Ricardo Leitão fala das ações do governo Trump em relação ao Brasil
Ricardo Leitão | Publicado em 06/08/2025, às 09h34 - Atualizado às 09h46
Foi em 1962 que o governo dos Estados Unidos atentou, pela última vez no século passado, contra a democracia no Brasil. Naquele ano, milhões de dólares foram despejados nos cofres do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) – instituição operada pela CIA – para financiar, nas eleições majoritárias, candidatos da direita.
Em Pernambuco, o alvo foi o ex-prefeito do Recife, Miguel Arraes, candidato a governador apoiado por uma frente de centro-esquerda. Arraes venceu o usineiro João Cleofas e, tempos depois, o Ibad tornou-se objeto de investigação por uma comissão parlamentar de inquérito, relatada pelo deputado federal Rubem Paiva, torturado e assassinado pela ditadura.
O descarrego dos dólares em 1962 foi uma ação imperialista preparatória para o golpe militar de 1964, cuja execução teve participação direta dos Estados Unidos. Navios de guerra da frota americana do Atlântico Sul foram fundeados ao largo do Porto de Santos, em São Paulo, com ordens para apoiar os golpistas, no caso de resistência das tropas fiéis ao presidente João Goulart. A prontidão da esquadra passou a ser conhecida como Operação Brother Sam.
Hoje golpistas não movimentam tanques nem navios de guerra na tentativa de empalmar o poder. Apesar de ser igual o objetivo principal – derrubar do poder o adversário democraticamente eleito – as armas são mais sofisticadas, embora não menos eficientes.
É o que ensina o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, protagonista do novo imperialismo, disfarçado de sanções tarifárias exorbitantes impostas a dezenas de países. No caso do Brasil, elas chegam a 50% sobre produtos exportados para os Estados Unidos, a maior taxa do mundo, a vigorar a partir desta quarta-feira, dia 6.
Portanto, no caso brasileiro, o confronto é muito mais político do que comercial. Para muito além dos entendimentos sobre os preços da manga e do etanol no mercado dos EUA, Trump pretende interferir na soberania do Brasil em duas questões principais: a anistia do ex-presidente Jair Bolsonaro e a sustação de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da quadrilha – liderada pelo ex-presidente – que planejou um golpe de Estado em 2023.
Alexandre de Moraes, ministro do STF e relator de processos criminais da quadrilha, é o principal alvo do presidente norte-americano.
Como sabido, Jair Bolsonaro é devotado áulico de Donald Trump desde 2018, quando empossado presidente do Brasil. Primeiro líder da direita a assumir o comando do País desde a redemocratização em 1985, passou a ter um papel relevante na rearticulação mundial das forças conservadoras. Já na campanha, Trump o auxiliou com o envio de recursos e de especialistas em redes sociais.
Presidentes no mesmo período, os dois se aproximaram ainda mais, a ponto de Bolsonaro tentar nomear o seu filho Eduardo como embaixador do Brasil nos Estados Unidos. Hoje deputado federal, refugiado em Washington, Eduardo é um dos articuladores da campanha a favor do tarifaço e contra o ministro Alexandre de Moraes.
Caso Jair Bolsonaro seja anistiado – responde a cinco processos criminais no STF – e vença as eleições presidenciais em 2026, a direita mundial formaria um forte bloco político ao sul da América Latina, reunindo o Brasil e a Argentina. Os dois países são as maiores economias e têm as maiores populações da região. Também áulico de Trump e autodenominado anarco-capitalista, Javier Milei, presidente argentino, aderiu a essa articulação austral da direita desde sua posse.
O novo imperialismo age sem qualquer constrangimento. Por declarações de auxiliares e de capachos internacionais, Donald Trump deixou evidente que as sanções comerciais ao Brasil apenas serão reduzidas na hipótese de o STF e o Congresso anistiarem Bolsonaro. Nem na ditadura houve tamanha afronta aos poderes Judiciário e Legislativo brasileiros, a pouco mais de um ano da eleição presidencial de 2026.
Anistiar, ou não, o ex-presidente será o grande confronto da esquerda com a direita nos próximos meses. Bolsonaro já está inelegível até 2030, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por atacar mentirosamente as urnas eletrônicas. Réu no STF, ele pode ser condenado a penas que somam 43 anos, junto com uma quadrilha formada por ex-ministros de seu desgoverno e comandantes militares. A direita irá às ruas para forçar a anistia; o mesmo fará a esquerda. Hoje com cerca de 30% das intenções de voto para presidente, Bolsonaro é páreo para o petista Luiz Inácio Lula da Silva.
É falso o argumento dos trumpistas – aqui e nos Estados Unidos – de que não foi dado ao ex-presidente amplo direito de defesa nos processos em que é réu. Os 34 golpistas contam com 96 advogados habilitados nos autos, com amplo e irrestrito acesso a todas as provas. Foram realizadas oitivas de oito testemunhas da acusação e 149 da defesa. Os interrogatórios dos réus sempre foram públicos, com todos os atos gravados em áudio, vídeo e transmitidos pela televisão. “Não houve no mundo uma ação penal com tanta transparência e publicidade como essa ação penal” – afirmou o ministro Alexandre de Moraes em sessão plenária do Supremo.
A sentença do STF dos bolsonaristas e dos outros golpistas deve sair até o final do próximo mês de setembro. Até lá, a direita não economiza no jogo duro: o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, e o presidente do Senado, David Alcolumbre, estão ameaçados de sanções financeiras pelos Estados Unidos, caso não coloquem logo em votação o projeto de lei que anistiaria Bolsonaro.
À exceção dos bolsonaristas, a reação no Brasil ao novo imperialismo foi imediata e unânime, liderada pelo presidente Lula. Ela levou à redução de taxações de produtos exportados para os EUA e renovou a possibilidade de entendimentos diplomáticos, o que já foi alcançado por outros países.
Entretanto, o tempo de alívio deve ser curto. Em decorrência do tarifaço, são inevitáveis – como já acontece – redução de atividades ou fechamento de empresas; desemprego; perda de mercados; queda do produto econômico e da renda dos trabalhadores. A estimativa é que, de princípio, a crise devore mais de 100 mil empregos.
Lula será culpado, por incapacidade de negociar com Trump uma saída, comportamento estimulado por “razões ideológicas”? Ou será culpado Bolsonaro, por apoiar o tarifaço e Trump, levado por interesses políticos pessoais?
A resposta que prevalecer até as urnas de outubro de 2026 ajudará a definir quem será o presidente da sucessão de Lula.