Ricardo Leitão: Farejando os votos dos mortos

Ricardo Leitão | Publicado em 05/11/2025, às 16h52

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Nesta semana, no Senado, se instalou a Comissão Parlamentar de Inquérito do Crime Organizado, depois de disputa entre o governo e a oposição pelo controle de sua presidência e relatoria, garantia de aparições na mídia e futuros votos a um ano das eleições de 2026. Na Câmara dos Deputados, esquerda e direita patrocinam projetos de lei que estabelecem penas maiores para integrantes de facções criminosas, igualmente de olho nas urnas do próximo ano. No entanto, nada se compara ao governador Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, estado onde se deu, durante 16 horas, a matança de 121 pessoas suspeitas de integrarem a facção criminosa conhecida como Comando Vermelho. 

Dezenas de cadáveres ainda estavam estendidos no chão, na comunidade da Penha, quando o governador reuniu seus pares da direita para receber solidariedade. Do primeiro time, compareceu apenas Romeu Zema, de Minas Gerais. Tarcísio de Freitas, de São Paulo, falou por vídeo conferência. Abraçaram Castro, compungidos, Ronaldo Caiado, de Goiás; Jorginho Mello, de Santa Catarina; Eduardo Riedel, do Mato Grosso do Sul, e Celina Leão, vice-governadora do Distrito Federal. 

Como anfitrião, coube ao governador do Rio de Janeiro a primazia do ataque ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Não dá para contar com o apoio do Governo Federal. A gente fez a nossa operação e foi um sucesso. De vítimas, só tivemos quatro policiais, o que restou são bandidos que atacaram a polícia e sofreram as consequências”. Romeu Zema, de Minas Gerais, seguiu no mesmo tom: “Estamos em guerra. Essas facções não são meras quadrilhas e devem ser combatidas pelas Forças Armadas. Por ideologia, o governo do PT prefere conviver com elas no lugar de enfrentá-las”. Ronaldo Caiado, de Goiás, foi ainda mais incisivo: “O presidente Lula é complacente com o crime e um aliado das facções. Exigir mais segurança não é uma pauta da direita, mas da população brasileira. Vamos mostrar como se faz quando assumirmos a presidência”.

O governador do Rio de Janeiro deu o nome de Operação Contenção ao enfrentamento, no dia 28 de outubro, entre 2.500 policiais, militares e civis, e cerca de 1.000 faccionados do Comando Vermelho. O resultado foram 121 pessoas mortas,  principalmente na mata que divide o Complexo do Alemão do Complexo da Penha, onde vivem 250 mil moradores. Na manhã do dia 29, quando a polícia já se retirara, familiares foram procurar os corpos na mata. Acharam 72, que foram ajuntados em uma rua, retrato macabro da maior matança da história do Brasil. Alguns tinham as mãos amarradas, perfurações com facadas e tiros na nuca. Ao menos um fora decapitado. A cabeça foi recolhida em um saco e entregue à família. Só havia pessoas negras expostas naquele retrato da barbárie.

Em seguidas entrevistas, Cláudio Castro apresentou o saldo de seu “sucesso”: Além dos 121 mortos, 123 suspeitos presos, cerca de 100 fuzis apreendidos e, segundo ele, o desmantelamento do Comando Vermelho no Rio de Janeiro.  A Operação Confronto tinha o objetivo de cumprir 69 mandados judiciais de prisão de chefes das quadrilhas, porém não prendeu ninguém. Mas acabara de superar a chacina de Carandiru, em outubro de 1992, em São Paulo, quando foram assassinados pela Polícia Militar, espremidos em suas celas, 111 presos amotinados.

Cláudio Castro, um bolsonarista extremado, cultiva outros “sucessos” em sua trajetória política. Estava à frente do governo durante os massacres de Jacarezinho (2012) e Vila Cruzeiro (2022). Pesquisa da Universidade Federal Fluminense mostra que desde o início de sua gestão, em agosto de 2021, operações da Polícia Militar provocaram 886 mortes, uma média de 30 por mês. Ele tem linhagem: em 2018, era vice-governador de Wilson Witzel, autor de célebre frase sobre a segurança no estado: “A polícia é que sabe fazer o correto. Vai mirar na cabecinha e ... fogo!  Para não ter erro”. 

A tenebrosa mistura da matança com o início da campanha eleitoral movimenta vontades de todos os lados. Os governadores reunidos no Rio decidiram criar o denominado Consórcio da Paz, algo insuficientemente esclarecido. Teria o propósito de agir em situações de emergência, mobilizando tropas e equipamentos quando um consorciado estivesse em crise – a exemplo, no momento, do Rio de Janeiro. Estariam também previstas articulações nas áreas de inteligência e monitoramento. Nada disso consta dos artigos da Constituição, o que não impedirá que os governadores da direita usem o consórcio como instrumento de pressão política contra o governo Lula.

Pela esquerda, os petistas e aliados se mobilizam no Congresso para colocar em votação projetos de interesse da aliança progressista. São eles os que combatem as facções criminosas, e sobretudo a Proposta  de Emenda Constitucional (PEC) que altera o sistema nacional de segurança.

Contudo, novas leis e consórcios não são caminhos eficientes para se vencer a violência urbana das facções do crime. É urgente que o Estado retome o controle do território hoje controlado pelo Comando Vermelho, pelo Primeiro Comando da Capital (principalmente em São Paulo) e outras facções menores que crescem na Bahia, no Ceará e no Amazonas. Tal controle já secexerce em 25% do território do Rio de Janeiro, onde vivem 4 milhões de pessoas. Dos 27 estados e no Distrito Federal, apenas quatro estados ainda não têm líderes das facções criminosas em seus territórios. Elas agora atuam não apenas no tráfico de drogas, no roubo de caminhões de cargas e extorsão de moradores. Estão também presentes em assassinatos por encomenda, no sistema financeiro, no contrabando internacional de armas, de combustíveis e infiltradas nos partidos políticos e na administração pública. 

Há saída? A Colômbia mostrou que sim, com um trabalho que durou anos e exigiu até acordo com a guerrilha, que em algumas regiões se alinhara aos narcotraficantes contra o governo federal, inimigo comum. Hoje não há em nenhuma grande cidade colombiana, como Bogotá, a capital, ou Medelin, facções que controlem territórios urbanos, como acontece no Rio. Foi duríssimo para a Colômbia vencer um narcotráfico de escala internacional, que chegou a se utilizar até de submarinos. Mas venceu, com o apoio dos Estados Unidos, maior consumidor de cocaína e outras drogas do mundo. 

A visão dos corpos estirados no chão, cercados de mulheres e crianças, é o retrato do nosso desafio. Somos capazes de vencer a brutalidade sangrenta defendida pela direita. Os cidadãos querem a paz. Do contrário, será fácil adivinhar quem vai somar votos com as matanças que podem se repetir.

Opinião Rio de Janeiro Ricardo Leitão

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