Ricardo Leitão: Julgar e punir, nunca esquecer

Não se trata de revanche, mas de justiça. Aceitar a democracia implica regras: alternância de poder, transparência, responsabilidade pública

Ricardo Leitão

por Ricardo Leitão

Publicado em 29/10/2025, às 15h09

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Há 50 anos, dia 25 de outubro de 1975, um sábado, o jornalista Vladimir Herzog se apresentou voluntariamente no Departamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa (Doi-Codi), em São Paulo. O órgão de inteligência e repressão da ditadura era encabeçado pelo Exército, mas também reunia policiais e outros agentes de repressão da Marinha e da Aeronáutica. No dia anterior, Herzog tinha sido procurado em casa por militares. Combinou que se apresentaria na manhã seguinte no destacamento.  À tarde, depois de torturado durante horas, estava morto. 

Dirigia o jornalismo da TV Cultura, depois de passagens pela rádio BBC, em Londres, e pelo jornal O Estado de São Paulo. Casado com a jornalista Clarice e pai de dois filhos ainda crianças, era filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas não tinha militância partidária. Foi sobre a suspeita de influência dos comunistas na imprensa de São Paulo que o interrogaram e torturaram até a morte no Doi-Codi. 

Seu assassinato, de intensa repercussão, foi apresentado pela ditadura como suicídio – uma farsa mais tarde desmascarada. Meses depois, o operário Manoel Fiel Filho, também apareceu “suicidado” em circunstâncias semelhantes, no mesmo local. As duas mortes levaram à exoneração do tenente-coronel Aldir Maciel da chefia do Doi-Codi e abriram as primeiras possibilidades para protestos públicos contra a ditadura, até então violentamente reprimidos. 

No dia 25 passado, na Catedral da Sé, no centro de São Paulo, outro ato interreligioso relembrou o assassinato de Vladimir Herzog e cobrou justiça aos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar de 1964 a 1985. Na época, a Igreja estava lotada, cercada por militares e policiais, o que não impediu que milhares de pessoas exigissem justiça. Neste ano, a Catedral da Sé recebeu novamente milhares de pessoas, solidárias com a memória de Herzog. Entre elas, a voz de Maria Elizabeth Rocha, presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ecoou com vigor:

Estou neste ato ecumênico, na qualidade de presidente da Justiça Militar da União, para pedir perdão a todos que tombaram, que sofreram lutando pela liberdade no Brasil. Pedir perdão pelos erros e omissões judiciais cometidos durante a ditadura. Peço perdão a Vladimir Herzog e seus familiares; a Paulo Ribeiro Bastos e minha família; a Rubens Paiva e a Miriam Leitão e a seus filhos; a José Genoíno, a Paulo Vannuchi e a João Vicente Goulart e a tantos outros, homens e mulheres, que sofreram com as torturas, as mortes, os desaparecimentos forçados e o exílio.  Peço, enfim, perdão à sociedade brasileira e à história do País pelos equívocos judiciais cometidos pela Justiça Militar Federal em detrimento da democracia e favorecimento ao regime autoritário. Recebam o meu pedido de perdão, a minha dor e a minha resistência”.

Ao final, além dos aplausos, o depoimento de Maria Elisabeth Rocha foi saudado com vivas a Herzog e protestos contra a anistia de Jair Bolsonaro e sua quadrilha de golpistas. Para muitos, foi como um ingresso no túnel do tempo que, no entanto, agora dava passagem aos novos tempos: o STM,  instrumento do autoritarismo no passado, pedia perdão por seus erros; não havia tropas da repressão cercando a Catedral da Sé e a luta contra o perdão aos golpistas naquele momento se fortalecia.

Julgar e punir, nunca esquecer. Os filhos e os amigos de Herzog têm certeza de que ele estaria nessa trincheira. Filho de judeus que fugiram da Europa para o Brasil, ameaçados pelo nazismo, ele chegou ao jornalismo em plena ditadura, forçado a trabalhar sob censura. Voltou para a Europa depois da Segunda Guerra, retornou ao Brasil e passou a se integrar a grupos de debates sobre o futuro do País, comuns na época. Nunca escreveu uma linha que demonstrasse conivência com o autoritarismo. Com certeza gostaria de saber que a prisão de Bolsonaro é uma possibilidade cada vez mais real.

Caso os ministros do STF rejeitem os últimos recursos judiciais do ex-presidente, ele começará a cumprir sua pena de 27 anos e 3 meses de cadeia no próximo mês. Será também o momento em que vai se intensificar a campanha da direita pela sua anistia. O projeto de lei já tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados. Aprovado, seguirá para apreciação pelo Senado e, se novamente aprovado, para deliberação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que poderá, ou não, sancioná-lo. Qualquer que seja a decisão nessas três etapas, haverá recurso ao Supremo, para que se pronuncie sobre a constitucionalidade das decisões da Câmara, do Senado ou do presidente da República.

Julgar e punir, nunca esquecer. Na conjuntura política de hoje a anistia é uma traição à democracia. Não serviria para viabilizar um processo de transição que marcasse a passagem de um governo autoritário para um governo de Estado de Direito – como ocorreu em 1979. Em outra hipótese daqueles que a defendem, a anistia representaria a pacificação. No entanto, tais defensores não querem a pacificação, querem a impunidade. Aprovar uma anistia irrestrita, pela qual se batem os bolsonaristas, seria se curvar diante dos que pretendem destruir a democracia brasileira. Estaria perdido o efeito mais importante da punição, que é o de inibir futuras aventuras liberticidas. 

Não se trata de revanche, mas de justiça. Aceitar a democracia implica regras: alternância de poder, transparência, responsabilidade pública. Estão agora em jogo não apenas os destinos de Jair Bolsonaro e sua quadrilha de golpistas, porém a chance de se romper com um ciclo autoritário secular, que sempre abriu espaços para ataques sucessivos ao Estado de Direito. Anistiar o ex-presidente e os seus sequazes civis e fardados equivale a lhes dizer que exigir suas punições é um erro; que fiquem à vontade para tramar outros atentados.

Se eles vencerem, de que terá valido a coragem de Vladimir Herzog, e de tantos outros, diante de seus torturadores?