Avaliação de empresas em ações de divórcio: entre a afetividade e o patrimônio

Otávio de Oliveira | Publicado em 20/10/2025, às 09h45 - Atualizado às 10h25

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A dissolução de um casamento que envolve participação societária revela um encontro sensível entre a afetividade e o patrimônio empresarial. Quando há empresa constituída na constância da união, ou capitalizada com recursos comuns, a avaliação dela valor integra a partilha.

A tarefa não é apenas contábil; é, também, interpretativa. Avaliar uma empresa é determinar o alcance econômico da contribuição de cada cônjuge, observando o regime de bens escolhido pelo casal e preservando a continuidade da atividade empresarial, o que, de resto, sustenta empregos, contratos e reputação no mercado.

Nos regimes de comunhão parcial ou universal, a participação societária adquirida durante o casamento integra o acervo comum. Isso não implica ingresso automático do cônjuge não sócio na sociedade, mas apenas o direito de meação sobre o valor econômico das quotas, a ser apurado na partilha, sem alteração do quadro societário, salvo disposição contratual específica ou deliberação válida dos sócios. O ponto central está em identificar, com precisão, o valor real da empresa, evitando superavaliações que asfixiem o negócio e subavaliações que frustrem o direito patrimonial do outro cônjuge.

A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça distingue, com nitidez, a esfera patrimonial da esfera societária. A Terceira Turma, no julgamento do REsp 2.223.719/SP, fixou entendimento segundo o qual o ex-cônjuge não sócio tem direito à partilha dos lucros e dividendos relativos às cotas que integram o patrimônio comum, desde a separação de fato até o efetivo pagamento dos haveres, sem ingresso na sociedade.

Essa orientação protege o valor devido ao ex-cônjuge e preserva a governança, servindo de baliza técnica para a perícia e para o julgador, especialmente quanto à necessidade de basear a avaliação em documentos contábeis fidedignos e na rejeição de projeções artificiais.

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A perícia contábil, nesses casos, é instrumento de concretização da justiça material. Não se limita a balanços ou demonstrativos: deve investigar a geração de caixa, a estrutura de capital, o risco operacional, a dependência de pessoas-chave para o negócio, o goodwill e a concentração de clientes.

A ausência de transparência documental compromete o resultado. Por isso, é dever do advogado delimitar com rigor o objeto da perícia, formular quesitos técnicos, indicar fontes de verificação e, quando necessário, requerer sigilo sobre dados sensíveis sem violar o contraditório.

A data-base da avaliação deve refletir o momento da dissolução da sociedade conjugal, usualmente a separação de fato, de modo a evitar enriquecimento indevido e impedir que fatos posteriores - alheios ao esforço comum - contaminem o cálculo. Essa marca temporal também se harmoniza com o entendimento de que lucros e dividendos percebidos após a separação de fato, mas derivados de cotas comuns, constituem frutos partilháveis até a liquidação dos haveres.

A forma de pagamento merece igual cautela. O parcelamento é admitido quando o desembolso imediato, ou em até 90 dias, compromete a viabilidade da empresa. A decisão deve considerar liquidez, fluxo de caixa e compromissos operacionais, de modo que a solução patrimonial não se transforme em inviabilidade econômica. O equilíbrio é alcançado mediante o fracionamento razoável, correção adequada, cláusula de vencimento antecipado por inadimplemento e garantias compatíveis.

O método de avaliação deve seguir o disposto no contrato social, preferencialmente a corresponder à natureza do negócio. O fluxo de caixa descontado, embora útil para empresas operacionais, é sensível a premissas estabelecidas; o método de múltiplos requer comparáveis idôneos; e o patrimonial líquido é mais aderente a holdings e sociedades constituídas com predominante ativo imobiliário. Em empresas familiares, com menor formalização, ajustes em remunerações e despesas são indispensáveis para evitar distorções durante a avaliação.

Em qualquer hipótese, a transparência é inegociável. O juiz pode determinar a exibição de documentos fiscais e bancários, a oitiva de contadores e a realização de perícias complementares. O objetivo é um só: aproximar o número da verdade econômica. A justiça, nesses casos, não se revela no cálculo exato, porem essencialmente na boa-fé do processo de apuração.

A partilha de bens empresariais é também uma questão de moralidade prática. O cálculo deve traduzir não apenas um valor monetário, mas um gesto de justiça: reconhecer a contribuição de ambos, proteger a continuidade do empreendimento e restabelecer o equilíbrio que a dissolução afetiva desfez. A ética do advogado, nesse contexto, consiste em preservar a integridade do resultado, rejeitando manipulações ou estratégias que convertam o Direito em instrumento de vantagem.

Ao fim, a avaliação empresarial em ações de divórcio é um exercício de racionalidade e de humanidade. Exige técnica, prudência e sensibilidade. A empresa deve sobreviver, e o cônjuge deve receber o que é seu. O equilíbrio, aqui, é o limite e o ideal: impedir que o litígio destrua o valor e que o ressentimento contamine a justiça. Quando a técnica caminha com a consciência moral, o Direito cumpre o seu papel civilizatório, vale dizer, transforma o conflito em medida justa, com o objetivo de preservar a dignidade das partes e a continuidade do que foi construído.

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