Recife ainda é capital do Nordeste? - Artigo por Priscila Neri

"O urbanismo deixou de ser instrumento de transformação e passou a servir como vitrine eleitoreira", afirma a arquiteta e urbanista Priscila Neri

Priscila Neri | Publicado em 06/05/2025, às 13h30 - Atualizado às 14h09

Rio Capibaribe no Recife - Priscilla Buhr/AMCS
Rio Capibaribe no Recife - Priscilla Buhr/AMCS

Apesar de sua importância histórica e cultural, Recife ocupa apenas a oitava posição entre as capitais do Nordeste em qualidade de vida. Essa realidade expõe décadas de escolhas políticas equivocadas e a urgente necessidade de um novo pacto urbanístico. Recife, capital de Pernambuco, foi durante décadas referência de vanguarda no Nordeste. Dono de um centro histórico pulsante, cortado por rios, pontes e ladeiras, o Recife que encanta os livros de história e inspira artistas do mundo todo parece, hoje, um retrato desgastado de si mesmo. Segundo o Índice de Progresso Social (IPS) 2024, divulgado pelo Instituto Cidades Sustentáveis, a cidade figura na oitava posição entre as capitais nordestinas em qualidade de vida. A pergunta que não quer calar é: como chegamos a esse ponto?

Os indicadores que mais comprometem a posição de Recife são segurança pessoal, inclusão social e saúde e bem-estar. A cidade apresenta uma das piores notas em segurança entre as capitais brasileiras, com uma taxa de 44,7 mortes por 100 mil habitantes em 2024, sendo considerada a 13ª cidade mais perigosa do mundo, de acordo com a plataforma Numbeo. Além disso, a inclusão social é prejudicada por altos índices de violência contra minorias e desigualdades de gênero e raça, enquanto a saúde pública enfrenta desafios como baixa expectativa de vida e alta mortalidade por doenças crônicas. Esses problemas refletem uma urbanização marcada por desigualdades históricas. A ocupação desordenada de áreas frágeis, como mangues e encostas, e a falta de infraestrutura adequada em comunidades periféricas contribuem para a vulnerabilidade socioambiental da cidade. Além disso, a mobilidade urbana é comprometida por um sistema de transporte público ineficiente e uma malha cicloviária insuficiente, agravando os congestionamentos e a poluição.

A resposta não está apenas nos números da pesquisa, mas nas decisões políticas que moldaram o espaço urbano recifense nas últimas décadas. As administrações municipais vêm optando por políticas fragmentadas, imediatistas e, muitas vezes, esteticamente apelativas, mas estruturalmente frágeis. Falta um projeto de cidade. O que existe é um projeto de poder — com foco em votos e visibilidade, não em transformação urbana real. A cultura do improviso e da maquiagem urbana tem dominado as gestões. Obras de impacto visual, como a Via Mangue, foram vendidas como soluções definitivas para os problemas de mobilidade, mas mostraram-se paliativas e ineficientes. O transporte público continua precário, as ciclovias são descontinuadas, os pedestres seguem sendo tratados como obstáculos ao tráfego, e o centro histórico, ao invés de ser resgatado, afunda-se em abandono.

A especulação imobiliária ocupa o lugar onde não deveria estar: o planejamento urbano. A verticalização avança em áreas sem infraestrutura adequada, enquanto as periferias crescem à margem dos serviços públicos, com moradias precárias e risco iminente de desastres. A cada temporada de chuvas, a cidade revive o mesmo drama: casas desabando, pessoas soterradas, famílias desabrigadas. Não se trata de uma catástrofe natural, trata-se de uma escolha política.

Recife possui uma das maiores desigualdades urbanas do país. O fosso entre o que se investe em bairros centrais e o que se negligencia nas periferias revela o abismo de prioridades. O urbanismo deixou de ser instrumento de transformação e passou a servir como vitrine eleitoreira. A cidade que deveria liderar o Nordeste em inovação, sustentabilidade e justiça social hoje é apenas sombra do que poderia ser. É sintomático que Recife, mesmo sendo um polo universitário, médico, tecnológico e cultural, esteja sendo superada por cidades que souberam, ainda que tardiamente, planejar seu crescimento com foco na qualidade de vida. Natal avança com políticas de mobilidade; Teresina investe em educação e saúde com eficiência urbana; João Pessoa se destaca por sua política habitacional integrada. E Recife? Recife segue presa ao seu passado, refém de sua própria vaidade histórica.

A pergunta que se impõe é: Recife ainda pode ser considerada a capital do Nordeste? Em protagonismo urbano, definitivamente não. A cidade precisa parar de administrar sua decadência e começar a projetar seu futuro. A falta de continuidade de planos diretores eficazes, a negligência com o transporte público, e a opção deliberada por investimentos inócuos ou de impacto visual duvidoso — como obras pontuais em detrimento da requalificação urbana em larga escala — têm transformado a cidade em um espaço fragmentado, desigual e inseguro. Enquanto outras cidades do Nordeste avançam em políticas de mobilidade urbana, planejamento sustentável, tecnologia social e inovação, Recife continua atolada em burocracias internas, obras inacabadas, e sobretudo, numa mentalidade ultrapassada que romantiza o passado em vez de construir o futuro.

Veja o exemplo da Via Mangue: uma mega obra viária que custou bilhões e prometia desafogar o trânsito da Zona Sul. No entanto, a falta de políticas complementares, como o incentivo ao transporte coletivo eficiente e à ocupação inteligente do solo urbano, fizeram da Via Mangue uma solução de fachada, bela no drone, mas inócua no cotidiano do cidadão. É a lógica da maquiagem urbana: estética sobre estrutura, marketing sobre mobilidade. Recife também negligencia sua população mais vulnerável, com um crescimento desordenado das periferias e ocupações em áreas de risco — uma tragédia anunciada. As chuvas, que ano após ano causam mortes e desabrigados, não são meras fatalidades naturais, mas consequências da falta de planejamento, fiscalização e investimento em infraestrutura urbana preventiva. Quando uma capital convive com mortes por deslizamentos ou enchentes todos os anos, isso não é um acidente: é uma política de omissão.

Do ponto de vista urbanístico, Recife está se desvalorizando. A cidade que já foi laboratório da arquitetura moderna no Nordeste, com figuras como Acácio Gil Borsoi e Delfim Amorim, hoje se vê refém de um mercado imobiliário que especula em áreas saturadas, ignora a função social da cidade e contribui para o espraiamento urbano. Falta diretriz, falta coragem, falta visão, falta prefeito, falta Câmara Municipal atualizada sobre inovação urbana. Recife deixou de pensar sua cidade para o futuro e passou a gerir sua paisagem como um cenário fixo, estagnado, decadente, pouco ousado.

Pode-se dizer que Recife ainda é uma capital do Nordeste, no sentido geográfico e simbólico. Mas em termos de protagonismo urbano, inovação social, bem-estar coletivo e liderança regional, a resposta é dolorosa: não, Recife não tem se comportado como uma capital de vanguarda. E isso precisa mudar. Não se trata de falta de recursos ou capacidade técnica. A cidade conta com universidades, institutos, profissionais e um patrimônio imaterial incomparável. O que falta é um pacto político e social comprometido com um urbanismo ético, voltado para as pessoas, para a inclusão, para a justiça espacial. Recife precisa parar de administrar o atraso e começar a projetar a esperança. Caso contrário, o Recife que conhecemos e amamos vai continuar a se afogar — não só em suas enchentes, mas em sua própria inércia. E isso, para qualquer urbanista sério, é inaceitável.

É necessário um novo pacto político-urbanístico, centrado nas pessoas, na justiça territorial, na valorização do espaço público e no combate às desigualdades. Chega de soluções superficiais, chega de esconder a miséria com floreiras em praças centrais. Ou Recife escolhe se reinventar com coragem, ou seguirá sendo lembrada apenas como a capital que poderia ter sido. O recifense não pode se contentar com a glória de dias passados. É hora de enfrentar os desafios presentes com coragem e determinação, para que possa, novamente, ser reconhecida como a verdadeira capital do Nordeste.