Luís Gallindo detalha, em artigo exclusivo, como a Nova Lei de Licitações (14.133) e o Art. 3º-A da OAB garantiram a segurança jurídica e a eficiência na contratação de advogados municipalistas
por Luís Gallindo
Publicado em 10/10/2025, às 18h54
Os bastidores da evolução legislativa sobre a contratação pública de advogados municipalistas. Do estigma da ilegalidade à legitimidade da advocacia municipalista
Como o art. 3º-A do Estatuto da OAB e a nova Lei de Licitações transformaram a advocacia municipalista contratada em instrumento legítimo de eficiência e segurança jurídica
Durante décadas, a advocacia municipalista viveu sob uma presunção de culpa. Cada contrato firmado por uma prefeitura ou câmara municipal com um escritório de advocacia era visto, de antemão, como suspeito, quase um ato de heresia administrativa. A jurisprudência, marcada por um formalismo desconectado da realidade dos pequenos municípios, confundia contratação direta com privilégio e assessoria jurídica com favor político. Nesse cenário, o advogado municipalista, muitas vezes o único profissional a sustentar juridicamente a estrutura jurídica de uma cidade, tornou-se o réu silencioso de um sistema que lhe negava legitimidade.
Foi nesse contexto que o artigo 3º-A do Estatuto da OAB, introduzido pela Lei nº 14.039/2020, representou uma autêntica declaração de independência para a classe. Ao reconhecer que “os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização”, o legislador não apenas conferiu densidade normativa à natureza intelectual da advocacia, mas reverteu o ônus histórico da desconfiança. A partir desse marco, a advocacia deixou de ser tratada como mera prestadora de serviços comuns e passou a ser reconhecida como atividade técnica e personalíssima, cuja essência é o raciocínio jurídico, a estratégia processual e a criação de soluções sob medida para cada realidade administrativa.
Essa virada legislativa não é uma ruptura, mas uma retomada do que a própria Constituição já anunciava em seu artigo 133: o advogado é indispensável à administração da justiça. A lei apenas reconheceu, tardiamente, que essa indispensabilidade se estende à esfera administrativa, onde a boa decisão pública depende da boa orientação jurídica. O exercício da advocacia, especialmente no âmbito municipal, é expressão concreta de um munus público: uma função social que não se exaure na defesa de interesses privados, mas se realiza na tutela do interesse coletivo, na prevenção do erro administrativo e na preservação da legalidade como forma de justiça.
Esse movimento encontrou na Lei nº 14.133/2021 o seu complemento natural. A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos substituiu a velha ideia de “singularidade formal” pela noção de “natureza predominantemente intelectual”, deslocando o foco da exclusividade do objeto para a complexidade da função exercida, a notória especialização. Mais do que alterar palavras, a lei inaugurou um novo paradigma: o da governança motivada. Agora, não se trata mais de proibir o gestor de contratar advogados externos, mas de exigir que ele fundamente a escolha, avalie alternativas e demonstre a notória especialização. A irregularidade não está em contratar, mas em contratar sem justificar, utilizando os critérios legais de forma objetiva.
O ano de 2018 marcou o início de uma virada silenciosa, porém decisiva, na história da advocacia municipalista. Naquele momento, um grupo de advogados de diferentes estados do Nordeste, unidos por uma mesma inquietação, decidiu enfrentar uma distorção que há décadas colocava a profissão sob suspeita: a ideia de que o trabalho do advogado seria um serviço comum.
Ao lado de colegas da Associação de Advogados Municipalistas da Paraíba, e representando a experiência acumulada em Pernambuco, levamos ao Conselho Federal da OAB uma proposta ousada: reconhecer expressamente, no Estatuto da Ordem, que os serviços prestados pelo advogado são, por sua própria natureza, técnicos e singulares.
A proposta foi acolhida e encaminhada ao Congresso Nacional, dando origem ao Projeto de Lei nº 4.489/2019, de autoria do deputado Efraim Filho (DEM/PB), apoiado por entidades municipalistas e pela advocacia municipalista brasileira. O texto afirmava que a licitação é inexigível quando o serviço exigir notória especialização, reconhecendo que os serviços jurídicos e contábeis são, por natureza, técnicos e singulares.
A aprovação do projeto, com a derrubada do veto presidencial, representou uma reparação histórica. A advocacia municipalista, tantas vezes criminalizada, conquistava um marco legal que reafirmava sua legitimidade: a confiança não se licita. Irmanadas Paraíba e Pernambuco, a ideia ganhou o país. De um debate regional nasceu o artigo 3º-A do Estatuto da OAB, promulgado pela Lei nº 14.039/2020, libertando advogados e gestores de um cenário de perseguição e incerteza.
Com o amadurecimento desse movimento, surgiu a Associação Brasileira da Advocacia Municipalista (ABAM), consolidando o diálogo com o Congresso durante a tramitação da Lei nº 14.133/2021, sob relatoria do deputado Augusto Coutinho. Foi uma vitória institucional: a nova lei consagrou a prescindibilidade do “ objeto singular ” como requisito literal, substituindo-a pela noção de atividade intelectual predominante, mudança que selou a emancipação definitiva da advocacia municipalista contratada.
O artigo 3º-A consagrou uma verdade ontológica: os serviços prestados por advogados são, por sua natureza, técnicos e singulares, desde que demonstrada a notória especialização. A Lei nº 14.133, por sua vez, substituiu a exigência de “singularidade do objeto” pela noção de serviço técnico de natureza predominantemente intelectual. Essas duas normas dialogam perfeitamente: o Estatuto define o ser da advocacia; a Lei de Licitações define o agir da Administração. Uma confere o fundamento ético-profissional, a outra, a moldura procedimental.
Durante anos, a singularidade foi interpretada como obstáculo formal; hoje, ela é entendida como característica inerente à própria atividade intelectual. A advocacia não é repetição, é criação. A nova lei não suprimiu o conceito, apenas o naturalizou: o que antes precisava ser provado, agora é presumido pela essência do ofício.
Ambos os diplomas convergem também na notória especialização, transformando-a em critério objetivo e público de legitimidade. O advogado é contratado não pela amizade, mas pelo histórico, pela produção técnica e pela experiência comprovada. O artigo 3º-A confere presunção de tecnicidade; a Lei nº 14.133 exige demonstração de aderência entre essa especialização e o objeto. O resultado é um equilíbrio virtuoso entre liberdade profissional e dever de motivação: a confiança passou a ser documentada.
A substituição da “singularidade” pela “intelectualidade predominante” trouxe algo que faltava ao sistema: previsibilidade. Gestores passaram a agir com segurança; advogados, com serenidade. O que antes era motivo de temor passou a ter lastro normativo e respaldo institucional.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, especialmente em seus artigos 20 e 22, fortaleceu essa cultura de motivação responsável. A contratação direta tornou-se legítima quando demonstrada a necessidade pública, a notória especialização e a motivação transparente. O foco migrou da proibição para o controle racional. O erro não está em contratar, está em não motivar.
Os Tribunais de Contas também evoluíram. O Tribunal de Contas de Pernambuco, por meio do Enunciado 21, reconheceu que basta a comprovação da notória especialização, entendimento reiterado pelo Ministério Público de Contas em pareceres recentes. Não se trata de tolerância, mas de governança: avaliar a racionalidade da decisão, e não demonizar a advocacia.
Essa nova cultura devolveu dignidade e responsabilidade à profissão. A inexigibilidade deixou de ser privilégio e passou a ser instrumento de eficiência. A advocacia municipalista, antes marginalizada, tornou-se colaboradora natural da boa administração.
A advocacia municipalista amadureceu. Aprendeu que resistir é necessário, mas construir é essencial. O advogado que atua junto aos municípios não defende pessoas, defende instituições. Sua função é garantir a legalidade, prevenir o erro e orientar a decisão pública.
As Leis nº 14.039/2020 e nº 14.133/2021 são mais que vitórias corporativas. São vitórias civilizatórias. Representam o momento em que o Estado brasileiro reconheceu que a técnica é também forma de probidade. Hoje, o controle e a advocacia não são polos opostos: são parceiros na construção da boa administração.
O artigo 3º-A e o artigo 74 da nova Lei de Licitações não criaram privilégios. Criaram razões de confiança. Consolidaram a ideia de que a advocacia é pilar de governança e que a boa gestão começa pelo bom conselho jurídico.
O desafio que se impõe agora é o de transformar segurança jurídica em responsabilidade compartilhada. A advocacia municipalista deve continuar vigilante, zelando para que a confiança conquistada não se converta em acomodação, mas em compromisso ético permanente. A maturidade não é o fim da caminhada, é o início de uma nova etapa, em que cada contrato, cada parecer e cada defesa consolidam, silenciosamente, a credibilidade de toda uma classe.
O tempo do medo ficou para trás. O que se inaugura agora é o tempo da maturidade: o tempo de uma advocacia municipalista consciente de sua dignidade, de sua técnica e de sua função pública. E talvez esse seja o maior legado desta geração: provar que a confiança e a legalidade podem caminhar juntas, e que servir ao interesse público, com ética e competência, continua sendo o ato mais revolucionário que um advogado pode praticar.