A racionalização judicial da moralidade administrativa

O advogado e articulista judicial Luis Gallindo aborda como a Justiça garante punição para quem violou a lei, mesmo após a reforma da improbidade

Luís Gallindo

por Luís Gallindo

Publicado em 18/11/2025, às 07h40 - Atualizado às 14h09

Fachada do Superior Tribunal de Justiça

O advogado e articulista Luís Gallindo escreve sobre a decisão do STJ que estabeleceu um marco na aplicação da nova Lei de Improbidade (EC 14.230/2021). O Tribunal evita a impunidade ao usar o princípio da continuidade normativa, garantindo que a punição da improbidade se torne um processo mais racional e previsível, focado no dolo e na estrita legalidade.

A Nova Interpretação da Improbidade Administrativa

O recente julgamento do AgInt nos EDcl no AREsp nº 1.508.300/SP, conduzido pelo Ministro Sérgio Kukina, estabeleceu um marco interpretativo essencial para a consolidação das novas regras da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), trazidas pela Lei nº 14.230/2021.

Em um cenário de incertezas sobre como aplicar a reforma, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou um caminho de equilíbrio entre proteger os direitos dos réus (garantismo processual) e garantir que a improbidade seja efetivamente combatida.

O caso que motivou a decisão era sobre a contratação direta e irregular de um advogado por uma Câmara Municipal.

Este exemplo concreto expôs o dilema da reforma: de um lado, a retroatividade benéfica (a aplicação da lei mais branda a atos anteriores) e, de outro, a continuidade típico-normativa (a ideia de que a conduta ilícita, embora com nome diferente, ainda é punível).

A controvérsia central consistia em definir se a conduta antes punida pelo art. 11, caput, da antiga LIA teria sido abolida ou reconfigurada sob o novo rol taxativo do dispositivo.

O STJ fez mais do que resolver um caso isolado. Ele criou uma verdadeira teoria de transição jurídica (hermenêutica).

Ao reconhecer que atos passados continuam sujeitos a punição se encontrarem correspondência material nos novos incisos do Art. 11 , o Tribunal traçou uma linha.

Essa linha evitou tanto a impunidade generalizada (absolver todos automaticamente) quanto o decisionismo punitivista (punir sem base legal clara), firmando um novo ponto de equilíbrio entre a estrita legalidade e a moralidade administrativa.

A transição na punição pela improbidade administrativa

A Lei nº 14.230/2021 inaugurou um novo paradigma no Direito Administrativo sancionador. Ao reformar profundamente a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), o Congresso buscou alinhar a punição com os princípios da Constituição, como a legalidade (só se pune o que está escrito na lei), a tipicidade (a conduta deve se encaixar exatamente na regra) e a culpabilidade.

As principais mudanças que redefiniram o limite da punição foram:

  • A exigência de dolo específico: o agente precisa ter a intenção clara e comprovada de ser desonesto ou de buscar um benefício indevido.
  • A revogação da modalidade culposa: erros ou negligência (culpa) não são mais puníveis por improbidade, apenas o ato intencional (dolo).
  • A taxatividade das condutas: o Artigo 11, que trata da violação de princípios, agora possui uma lista fechada de atos puníveis.
  • A reformulação das sanções: as punições (penas) se tornaram mais proporcionais à gravidade do ato.

Em termos jurídicos, a reforma rompeu com o antigo modelo que se baseava muito na "moral". O que antes era punido como "violação genérica à moralidade" agora exige que se prove a intenção desonesta (dolo) e que a conduta se encaixe exatamente no tipo legal (subsunção estrita).

O papel do STF e a consagração da retroatividade

Essa mudança nas regras exigiu que os tribunais criassem uma nova forma de interpretar a lei (nova hermenêutica). O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia fixado, no Tema 1.199:

  • A improbidade sempre exige dolo.
  • A revogação da punição por culpa não volta atrás para anular condenações definitivas.
  • As novas regras se aplicam aos processos que ainda estão em andamento.

Posteriormente, o STF confirmou que as alterações no Artigo 11 (que trata da violação de princípios) também valem para atos praticados sob a lei antiga, desde que o caso ainda não tenha sido julgado em definitivo (trânsito em julgado).

É nesse contexto de transição que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) , ao julgar o caso AgInt nos EDcl no AREsp 1.508.300/SP, consolidou a aplicação prática da reforma.

O Tribunal adotou a retroatividade benéfica (aplicar a lei mais branda) , mas a transformou em um método: a continuidade típico-normativa. Este princípio serve para verificar se o ato desonesto, embora praticado sob a regra antiga, continua sendo punível sob a nova lei.

Ou seja, a reforma não extinguiu o dever de honestidade (probidade) , mas apenas redefiniu os contornos jurídicos do que pode e deve ser punido.

A Razão de Decidir (Ratio Decidendi): Continuidade Típico-Normativa

O núcleo decisório do acórdão está na afirmação do princípio da continuidade típico-normativa — a regra de que uma conduta ilegal continua punível, mesmo que a lei mude seu nome ou a forma de descrevê-la —, conceito oriundo do direito penal e aplicado com rigor técnico à improbidade administrativa.

Dacordo com o Ministro Sérgio Kukina, não há abolitio criminis administrativa (isto é, a conduta não foi abolida e a punição não foi extinta) quando o ato ilícito, ainda que praticado sob a redação anterior da LIA, mantém correspondência material— ou seja, tem a mesma essência e conteúdo — com algum dos novos incisos do art. 11 introduzidos pela Lei nº 14.230/2021.

O STJ reconheceu que a reforma suprimiu o antigo “caput aberto” do art. 11 — que permitia punir qualquer violação genérica a princípios —, substituindo-o por um rol taxativo de condutas (uma lista fechada).

Essa modificação, contudo, não extinguiu automaticamente todas as hipóteses antes previstas. A continuidade típico-normativa impede que o intérprete conclua pela abolição do tipo quando a essência da conduta permanece tipificada no novo regime.

No caso concreto, os réus haviam sido condenados pela contratação direta e irregular de advogado, conduta que violava a impessoalidade e o caráter competitivo do processo licitatório.

O relator identificou correspondência exata entre o comportamento dos agentes — frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial do certame para benefício próprio ou de terceiros — e o atual art. 11, inciso V, da LIA.

Concluiu-se, assim, pela continuidade do tipo e pela manutenção da condenação, com mera readequação das sanções (ajuste das penas à lei nova e mais branda).

O acórdão também reafirmou a retroatividade benéfica (a aplicação da lei mais favorável ao réu) prevista no Tema 1.199 da repercussão geral (STF), aplicável a processos sem trânsito em julgado (sem decisão final e definitiva).

Essa retroatividade, porém, não implica absolvição automática, mas reclassificação e ajuste das penalidades à luz da nova lei.

A razão de decidir (ratio decidendi) repousa, portanto, sobre dois eixos complementares: a continuidade típico-normativa, que preserva a coerência do sistema, e a retroatividade condicionada, que harmoniza legalidade e segurança jurídica.

O STJ, ao adotar essa orientação, não apenas seguiu o entendimento do STF, mas conferiu densidade prática e racionalidade sistêmica à transição do regime sancionador da improbidade.

As implicações práticas e dogmáticas da decisão

As consequências do julgado do STJ transcendem o caso concreto e irradiam efeitos sobre todo o sistema de responsabilização por improbidade administrativa.

A decisão redefine parâmetros interpretativos, reposiciona o papel do dolo (a intenção de praticar o ato desonesto) e impõe novos marcos de segurança jurídica e proporcionalidade sancionatória.

No plano prático, o reconhecimento da continuidade típico-normativa significa que a reforma legislativa não produziu um vácuo punitivo generalizado (uma impunidade em massa).

Condutas praticadas sob a vigência da redação anterior da LIA continuam passíveis de responsabilização, desde que correspondam materialmente (tenham a mesma essência) a um dos incisos do art. 11 reformado.

Evita-se, assim, que atos dolosos e graves de violação à impessoalidade, à publicidade ou à moralidade administrativa sejam automaticamente absolvidos pela simples revogação de dispositivos genéricos.

O julgador deixa de atuar como criador de tipos (alguém que inventa a regra punitiva) e passa a exercer a função de intérprete da continuidade normativa, aplicando o novo texto legal sem romper a coerência do sistema.

Sob o prisma dogmático (o ponto de vista da teoria jurídica), a decisão reforça a exigência de dolo específico como elemento nuclear da improbidade.

O Ministério Público e os órgãos de controle passam a suportar um ônus probatório qualificado (uma obrigação de provar o ato mais rigorosa), devendo demonstrar que o agente atuou com a finalidade de obter proveito indevido para si ou para terceiros.

A improbidade administrativa, portanto, deixa de abarcar erros técnicos, deficiências administrativas ou atos de mera inabilidade (culpa). O que se exige é a demonstração da intenção desonesta de violar o interesse público, em consonância com o novo §1º do art. 11 da LIA.

Outro ponto de relevo está na readequação das sanções. O STJ determinou a exclusão da suspensão dos direitos políticos, penalidade que não mais figura no art. 12, III, da LIA.

Essa supressão revela uma tendência de racionalização punitiva, substituindo o antigo viés moralizador por uma dosimetria (cálculo da pena) mais técnica e proporcional.

As penas passam a observar a gravidade do fato, a extensão do dano e o grau de dolo, evitando desproporções que comprometam o princípio da razoabilidade e o sentido de justiça material da resposta estatal.

A decisão também projeta efeitos sobre a atuação institucional dos tribunais e do Ministério Público. A nova interpretação da lei reduz o espaço do voluntarismo judicial (o poder de decidir por vontade própria) e impõe o respeito à legalidade estrita, sem renunciar à proteção da probidade como valor constitucional essencial.

Em vez de um sistema movido por percepções morais subjetivas, emerge um modelo juridicamente disciplinado e garantista, que preserva a eficácia do controle e a previsibilidade das decisões.

Por fim, o julgado contribui para a consolidação de uma cultura de estabilidade e coerência na aplicação da LIA. A jurisprudência passa a se orientar por critérios objetivos de continuidade normativa e retroatividade condicionada, reforçando a previsibilidade e a confiança no sistema sancionador.

Mitiga-se, assim, a insegurança jurídica que marcou os primeiros anos de vigência da Lei nº 14.230/2021, fortalecendo a racionalidade do controle de probidade administrativa no Brasil. 

A decisão proferida no AgInt nos EDcl no AREsp nº 1.508.300/SP representa um ponto de equilíbrio na trajetória de amadurecimento do Direito Administrativo sancionador.

O Superior Tribunal de Justiça, ao aplicar o princípio da continuidade típico-normativa, reafirma que a moralidade administrativa permanece como valor tutelado, agora situada em um contexto de legalidade estrita, tipicidade e proporcionalidade.

A improbidade, antes associada a um discurso punitivista e subjetivo, cede espaço a um modelo mais racional, no qual a sanção decorre de conduta comprovadamente dolosa e tipificada.

A hermenêutica consagrada pelo Tribunal traduz uma transição do moralismo judicial para o um regime jurídico racional e responsável, fundado na legalidade estrita, tipicidade e proporcionalidade.

O que se busca punir não é a mera irregularidade administrativa, mas a violação consciente dos deveres de honestidade, imparcialidade e lealdade ao interesse público.

O reconhecimento da retroatividade benéfica e da readequação das sanções revela, ainda, uma postura coerente com o garantismo constitucional, sem que se abdique da função pedagógica e dissuasória da improbidade.

O acórdão consolida uma tendência: a improbidade não foi abolida, mas reconstruída sobre bases mais seguras e racionais.

O controle da probidade administrativa, longe de ser enfraquecido, torna-se mais técnico, previsível e justo, resultando em um sistema sancionador mais fiel à Constituição e mais equilibrado na proteção da Administração e dos direitos fundamentais.

Em síntese, o STJ reafirma que a probidade não se extingue com a reforma, apenas se depura (se purifica, se aperfeiçoa). Ao substituir o excesso moralizador pela precisão normativa, o Tribunal contribui para um novo paradigma, no qual a moralidade pública é preservada não pelo arbítrio do intérprete (vontade pessoal do juiz), mas pela força civilizatória da lei e pela coerência da jurisprudência.