Padre Júlio Lancellotti visita Recife, celebra missa e relembra resistência de Frei Caneca e Dom Hélder Câmara

Pe Júlio Lancellotti falou sobre repressão, redes sociais, neopentecostalismo e se emocionou em visita ao local onde Frei Caneca foi condenado à morte

Plantão Jamildo.com

por Plantão Jamildo.com

Publicado em 13/09/2025, às 10h29 - Atualizado às 10h37

Visita do Padre Júlio Lancelotti no Recife - DIVULGAÇÃO/ Augusto Souza
Visita do Padre Júlio Lancelotti no Recife - DIVULGAÇÃO/ Augusto Souza

O padre Júlio Lancellotti, pároco da Igreja de São Miguel Arcanjo, em São Paulo, esteve no Recife na sexta-feira (12). Ele concluiu a passagem pela capital pernambucana celebrando uma missa na Igreja de Nossa Senhora da Assunção, na Rua das Fronteiras, no bairro da Boa Vista, templo que abrigou Dom Hélder Câmara durante seu período como arcebispo de Olinda e Recife.

Um dos momentos mais marcantes da passagem pelo sacerdote no Recife ocorreu na Igreja do Terço. “Fiquei muito emocionado porque eu gosto muito do Frei Caneca. Estar na Igreja do Terço, no lugar onde ele foi despido das vestes religiosas e sacerdotais, e levado para ser executado, me marcou muito.”

Frei Caneca, líder da Confederação do Equador, deveria ser enforcado, mas três carrascos recusaram-se a cumprir a ordem do Império, e a comissão militar determinou o fuzilamento em 13 de janeiro de 1825, no Forte das Cinco Pontas.

Padre Júlio destacou que a trajetória do religioso carmelita foi marcada pela defesa da participação popular e pela resistência ao centralismo imperial e comparou se Frei Caneca vivesse nos dias atuais. “Ele estaria do lado dos que lutam pelo mundo republicano, que haja a participação. Por isso ele foi contra a Constituição imposta pelo Imperador Dom Pedro I”, disse.

Frei Caneca era um homem intelectual também, que fez toda a proposta de educação para a Confederação do Equador e tinha um jornal. Por que o Imperador se irritava tanto com o monge carmelita? Não tinha internet, não tinha publicação de nada. Quanta gente no Império sabia o que pensava o Frei Caneca? E, no entanto, ele foi executado pelo Imperador Dom Pedro I”, afirmou o ativista social.

Visita do Padre Júlio Lancelotti no Recife

Desafios do Brasil atual

Na entrevista exclusiva ao site Jamildo.com, Padre Júlio refletiu sobre os desafios de épocas distintas na história do Brasil, comparando a repressão da ditadura militar com os embates atuais, em que há violência e ameaças no ambiente digital. Ele também relacionou a conjuntura política, a influência de movimentos religiosos e a permanência de exemplos de lideranças cristãs na resistência social.

São momentos históricos distintos, com o advento da inteligência artificial, da internet. Nós não tínhamos na década de 1980 o Instagram, o Twitter, o Facebook, todos esses instrumentos digitais. E o neoliberalismo se aperfeiçoou muito e um dos aspectos do neoliberalismo é o individualismo”, disse.

Padre Júlio lembrou que a ascensão do neopentecostalismo no Brasil foi, em parte, uma reação para neutralizar uma Igreja Católica mais atuante, inspirada em figuras como Dom Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns e Dom Luciano Mendes de Almeida.

A repressão da ditadura militar matou muita gente. Quem pensasse diferente desaparecia. Hoje, a reação é virtual. O linchamento é virtual”, afirmou.

Memórias de Dom Hélder

Padre Júlio Lancelotti no museu dedicado a Dom Hélder Câmara

Na conversa, o sacerdote recordou a censura imposta ao nome de Dom Hélder durante o regime militar, período em que os jornais não podiam mencioná-lo. Padre Júlio destacou que esse silenciamento foi uma forma de tentativa de apagamento da história.

“Se você for procurar saber quem era o arcebispo de Olinda e Recife durante o tempo de Dom Hélder, pelos jornais você não consegue saber”, relatou.

O ex-arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, poderia ter sido o primeiro brasileiro a vencer o prêmio Nobel da Paz, no início dos anos 1970, não fosse a intervenção do governo militar do general Emílio Garrastazu Médici, que impediu as três tentativas de indicações.

Um dossiê revelado pela Comissão Estadual da Memória e Verdade, que leva o nome do religioso, reúne diversas correspondências trocadas por autoridades entre os anos de 1970 e 1973. De acordo com o coordenador da comissão, Fernando Coelho, Dom Helder apresentava todos os pré-requisitos para ganhar a premiação devido a sua atuação humanitária e contrária à ditadura. Porém, ganhar o prêmio daria uma grande visibilidade para os problemas que o Brasil vivia como torturas e perseguições a quem era oposição.

Peças do acervo de Dom Hélder Câmara

Ele mencionou também as passagens de resistência que marcaram o período. Uma delas ocorreu quando Dom Hélder orientava crianças a cantar o Hino Nacional diante da presença de militares em procissões, em um gesto de firmeza e sutileza diante da vigilância do regime.

Padre Júlio ressaltou que a trajetória de Dom Hélder se destacou pela coerência ética e pela recusa em instrumentalizar a fé. “Dom Hélder nunca manipulou o sentimento religioso das pessoas. Dom Paulo nunca fez isso, Santa Dulce não fez”, afirmou.

Em suas lembranças, ele destacou ainda a projeção internacional do arcebispo. “Dom Hélder foi muito conhecido na Europa toda, amigo do Papa Paulo VI, que tinha um carinho muito grande por Dom Hélder”, disse.

Padre Júlio contou que esse vínculo se expressava em momentos simples, como quando Paulo VI pedia que o arcebispo cantasse uma canção popular brasileira.

O Papa Paulo VI gostava que Dom Hélder cantasse essa música que o povo cantou. Ele dizia: ‘Canta, canta aquela música’. E Dom Hélder levou para ele, para ele conhecer”, recordou.