Em artigo para o site, o secretário de Habitação Felipe Cury defende as mudanças na Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) em debate na Câmara
Felipe Cury | Publicado em 22/09/2025, às 08h53 - Atualizado às 09h20
Recife vive um momento histórico. A cidade, marcada por profundas desigualdades socioespaciais, está diante da revisão mais ampla e participativa de sua legislação urbanística: a consolidação da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS).
Mais do que uma atualização normativa, a LPUOS representa um passo essencial para pôr em prática os princípios do direito à cidade. O objetivo é democratizar o acesso à terra, à moradia popular e aos espaços públicos qualificados, enfrentando desigualdades históricas que marcaram a formação da cidade e promover um modelo de desenvolvimento urbano mais inclusivo e equilibrado.
A proposta da nova LPUOS não nasce do acaso. Desde 2018, audiências públicas, oficinas e reuniões agruparam mais de 1.800 contribuições da sociedade civil organizada, do setor produtivo, das universidades e dos movimentos sociais.
Notadamente, foram criadas novas áreas ZEIS, fruto do forte clamor público, registrado na audiência realizada em 08 de abril deste ano, quando representantes de diversos segmentos reivindicaram o direito à permanência das famílias no seu lugar de vida e com moradia digna para aquela população de baixa renda assentada em áreas do centro. O resultado desse processo é uma lei que busca reunir urbanidade, habitabilidade, preservação ambiental com justiça social, resultado de uma construção com a sociedade.
Recife convive há décadas com um modelo de desenvolvimento urbano excludente. Com uma distribuição espacial que exclui parcelas significativas da população de áreas dotadas de infraestrutura e qualidade de vida urbana.
Considerando, ainda que, a Lei dos 12 bairros, mesmo motivada pelas melhores intenções, precisava de atualização para esses novos tempos. Se ressalta que a LPUOS mantém, para essa área, várias conquistas urbanas, a exemplo da proibição de espigões.
Ao longo do tempo, moradores de baixa renda foram expulsos para as periferias e os imóveis nas áreas mais centrais, dotados de infraestrutura, foram inflacionados. Vivenciamos o que a literatura específica chama de gentrificação, que é a segregação espacial normatizada com a substituição de moradores pelas intervenções voltadas para um público já privilegiado.
A nova LPUOS surge para romper com esse ciclo e redesenhar a cidade sob uma perspectiva mais inclusiva.
Ao revogar normativas direcionadas a parcelas específicas e unificar regras antes dispersas. A proposta amplia para os 94 bairros do Recife parâmetros urbanísticos que antes eram exclusivos para alguns territórios, como calçadas mais largas, permeabilidade visual dos lotes, ajardinamento frontal e valorização das frentes d’água. Esses elementos deixam de ser privilégios e passam a compor um padrão mínimo de qualidade para a produção urbana em toda a cidade.
Mais do que atualizar a legislação, a nova LPUOS assume um compromisso com a justiça social. Fruto do debate público, a Lei se propôs criar 16 novas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) e ampliar outras já existentes, garantindo o direito de permanência de comunidades populares em áreas valorizadas da cidade, onde já existe infraestrutura, serviços públicos e oportunidades de trabalho.
A proposta da LPUOS dialoga com uma realidade dura: Recife perdeu população na última década, e milhares de famílias migraram para municípios vizinhos em busca de habitação popular. Essa expulsão silenciosa revela que, sem políticas urbanas inclusivas, o crescimento econômico tende a caminhar lado a lado com a segregação socioespacial.
Para enfrentar esse desafio, a nova lei cria condições e benefícios para ampliar de forma significativa a produção de habitação popular, priorizando bairros com infraestrutura já consolidada.
Em sintonia com as diretrizes do governo Lula, que tem trabalhado para fortalecer o Minha Casa Minha Vida e ampliar o acesso à moradia digna em todo o país, Recife avança na construção de uma política urbana que inverte a lógica historicamente excludente.
A habitação social deixa de ser empurrada para as periferias e passa a ocupar também as áreas centrais e os bairros tradicionais, aproximando as famílias de baixa e média renda das oportunidades de emprego, educação, transporte, saúde e lazer. Trata-se de reduzir desigualdades históricas e promover uma cidade mais integrada, inclusiva e democrática.
O direito à cidade não se resume ao acesso ao que já existe, mas ao poder coletivo de transformá-la em um espaço mais justo e inclusivo. Recife tem avançado na qualificação dos espaços públicos, na mobilidade urbana e na ampliação dos serviços essenciais.
No entanto, de pouco adianta todo esse esforço se a produção do solo urbano continua sendo normatizada de forma fragmentada e desigual, variando conforme o território, em vez de seguir uma visão integrada de cidade. Quando cada área é regida por regras que não democratizam o espaço, o resultado é uma urbanização marcada por contrastes: de um lado, bairros bem estruturados e valorizados; de outro, periferias adensadas que concentram uma população que necessita de mais infraestrutura, oportunidades e qualidade de vida urbana.
A nova LPUOS surge justamente para corrigir essa distorção, estabelecendo um marco regulatório unificado que democratize o acesso ao solo urbano e permita construir uma cidade com qualidade para todos.
A proposta do Habitacional Vila Aeronáutica, em Boa Viagem, que garantirá moradia digna para 2,6 mil pessoas de baixa renda do próprio bairro, evidencia de forma contundente as contradições do debate urbano no Recife.
Sob o pretexto de uma suposta preocupação com impactos urbanísticos e ambientais, setores conservadores e elitizados se opõem ao projeto, quando o que está em disputa, na realidade, é a histórica resistência em permitir que famílias de baixa e média renda tenham acesso a áreas consideradas nobres.
Essa reação revela que a democratização do solo urbano ainda enfrenta barreiras simbólicas e políticas que vão muito além da técnica e tocam no cerne das desigualdades socioespaciais existentes na nossa cidade.
E é justamente por isso que a Secretaria de Habitação e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano trabalharam lado a lado na construção do Projeto de Lei para revisão da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo.
As intenções são claras: cabe ao município, enquanto gestor e planejador do território, assumir o papel de agente equalizador, garantindo que a cidade não continue fragmentada entre bairros estruturados e periferias precarizadas.
O objetivo é transformar Recife em um espaço verdadeiramente inclusivo, onde todos, independentemente de sua renda, possam usufruir dos benefícios urbanos e ter acesso a oportunidades de infraestrutura e qualidade de vida.
Mais do que um texto legal, a LPUOS é um projeto de cidade, que busca construir um Recife melhor, com espaços públicos qualificados e acessíveis a todos, preservando a história, a memória e a cultura da cidade, fortalecendo a relação com nossos rios, áreas verdes e patrimônio natural, e garantindo uma cidade para todos, com oportunidade de morar bem. Que o direito de permanência da população de baixa renda seja assegurado e as comunidades locais sejam protegidas.
O projeto propõe um modelo urbano que acolhe, integra e distribui oportunidades e direitos. Ao buscar democratizar o acesso ao solo urbano, quando possibilita o lote privado ser compartilhado, assegura moradia digna em áreas centrais e fortalece o papel social da cidade, a lei confronta estruturas e práticas que, por décadas, mantiveram privilégios concentrados em poucos bairros.
É natural que haja resistência em torno dessa mudança. É mais simples defender a manutenção de normas urbanísticas específicas do que o exercício que cabe à gestão de olhar a cidade como um todo.
Nesse sentido, o verdadeiro desenvolvimento urbano não se mede apenas pela valorização imobiliária ou pelo crescimento econômico, mas pela capacidade da cidade de garantir que todas as pessoas, especialmente aquelas marginalizadas, possam viver, permanecer e ter qualidade de vida urbana.
*Felipe Cury é secretário de Habitação da Prefeitura do Recife