PL do aborto: Os estupradores agradecem

A depender de agravantes e atenuantes, a mulher estuprada pode receber uma pena superior à do estupradores

Jamildo Melo

por Jamildo Melo

Publicado em 16/06/2024, às 07h14

O objetivo declarado dos bolsonaristas é forçar Lula a vetá-lo e, dessa forma, se indispor com a grande maioria conservadora, como os evangélicos. - Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil
O objetivo declarado dos bolsonaristas é forçar Lula a vetá-lo e, dessa forma, se indispor com a grande maioria conservadora, como os evangélicos. - Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

Por Ricardo Leitão, especial para o Blog de Jamildo

Segundo a Polícia Federal (PF), 180 radicais bolsonaristas, condenados pelos atos golpistas em 8 de janeiro de 2023, em Brasília, fugiram do país. Quebraram as tornozeleiras eletrônicas, se enfurnaram em malas de carros e cruzaram rios em botes. Estariam escondidos no Paraguai, no Uruguai e na Argentina, onde contariam com o apoio de milícias da extrema direita. A fuga em massa não foi uma operação de amadores; exigiu articulação internacional, logística, armas e dinheiro.

O passo seguinte dos fugitivos bolsonaristas é solicitar asilo político, alegando perseguição do governo brasileiro. Uma mentira evidente. Eles foram condenados por terem invadido e depredado o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, tentando derrubar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, recém empossado, e colocar em seu lugar o ex-presidente Jair Bolsonaro, recém derrotado.

O Brasil tentará extraditar os 180, grupo formado por homens e mulheres. Porém terá de se submeter aos meandros da diplomacia, que poderá ter ainda de enfrentar os labirintos em países como a Argentina, cujo governo se harmoniza com o bolsonarismo.

A tendência, portanto, é a “crise dos fugitivos” se arrastar e se juntar à crise política - essa bem mais real – que esgarça a relação do governo Lula com o Congresso. De um lado, radicalizada pelo bolsonarismo, na Câmara dos Deputados e no Senado; de outro, pelas fraturas internas do governo, abertas pela autofágica antecipação das disputas pela sucessão do presidente Lula.

Aos fatos. Sob o silêncio da grande maioria da bancada governista, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência da votação de um projeto de lei que equipara ao crime de homicídio o aborto realizado após 22 semanas de gestação e com a viabilidade do feto, mesmo quando a mulher tenha sido vítima de estupro.

A depender de agravantes e atenuantes, a mulher estuprada pode receber uma pena superior à do estuprador. O projeto de lei vai à votação no plenário. O objetivo declarado dos bolsonaristas é forçar Lula a vetá-lo e, dessa forma, se indispor com a grande maioria conservadora, como os evangélicos.

No mesmo dia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, a mais importante da Casa, controlada pelos bolsonaristas, aprovou por 47 votos a 17 proposta de emenda constitucional que criminaliza o porte e posse de qualquer quantidade de droga, ao contrário da posição majoritária do Supremo Tribunal Federal. A proposta vai ainda passar por uma comissão especial e seguir depois para a votação no plenário.

A celeridade da tramitação dos dois projetos foi insuflada pela sólida base da oposição conservadora, formada pela Frente Parlamentar Agropecuária; Frente Parlamentar Evangélica e a Bancada da Bala, orientada pelo princípio de que “bandido bom é bandido morto”.

A tragédia é que os dois projetos têm possibilidade de ser aprovados no plenário. Seus defensores afirmam que eles refletem “o desejo da família brasileira”, seja isso o que for. E o governo Lula não tem maioria segura para se opor: entre os 513 parlamentares da Câmara dos Deputados, por exemplo, conta apenas com o voto seguro de uns 150.

No Palácio do Planalto já existe quem se dobre à fatalidade de sucessivas derrotas na chamada “pauta de costumes”, como os projetos do aborto e das drogas. O caminho que se abre agora seria avançar com a “pauta econômica”, que garantiria o financiamento dos programas sociais de Lula.

No entanto, também nesse campo há problemas sérios, o que enfraquece o ministro da Fazenda Fenando Haddad, um dos nomes especulados à sucessão presidencial, alvo constante do “fogo amigo”.

Haddad ainda não conseguiu aprovar no Congresso a regulamentação da Reforma Tributária; não indicou fontes financeiras para assegurar o déficit zero nas contas públicas no fim de dezembro e foi apontado, dentro do governo, como responsável pela devolução, pelo Senado, de medida provisória que reduziria os impactos da desoneração da folha de pagamento em 17 setores da economia.

Isolado, Haddad tenta agora buscar recursos no corte de despesas do governo, um discurso que arrepia Lula e o PT, às vésperas da eleição municipal. Na transição e no início da gestão, o ministro contou com o apoio do Congresso na aprovação de projetos estruturadores, como a Reforma Tributária. Agora, com o confronto aberto, não se sabe.

A polarização entre a esquerda lulista e a direita bolsonarista, aprofundada em 2022, vai continuar neste ano e em 2026. Não há espaço para uma terceira via de centro, depois que as pretensões sociais-democráticas do PSDB se esfarelaram. A direita bolsonarista tem forças para dar o troco nas eleições municipais deste ano e na presidencial de 2026? “Voto a voto”, livro recém lançado de Maria Carolina Trevisan e Maurício Moura (Editora Telha), sugere pistas.

A eleição presidencial de 2022 foi a disputa mais acirrada desde a redemocratização, em 1985. Coube a Jair Bolsonaro ser o primeiro presidente candidato à reeleição derrotado, com a menor diferença entre o ganhador e o perdedor. Lula venceu o pleito com 60.345.999 (50,9%) dos votos válidos, contra 58.206.354 (49,1%) de Bolsonaro. Uma diferença pequena, de apenas 2.139.645 de votos, mas suficiente para fazer do ex-presidente líder incontestável de uma nova direita, chegando a eleger 12 deputados federais, cinco senadores e um governador: Tarcísio de Freitas, de São Paulo.

Bolsonaro ainda foi fundamental para a reeleição dos governadores Jorginho Melo (Santa Catarina), Marcos Rocha (Rondônia), Mauro Morais (Mato Grosso), Ratinho Júnior (Paraná) e Antônio Donarium (Roraima). Na Câmara dos Deputados, o bolsonarismo mais extremado conta com 21 representantes. Além disso, o ex-presidente ajudou o PL, seu partido, a eleger a maior bancada da Casa, aumentando sua base em 66 deputados. Sua força cresce e sua influência aumenta na mesma medida em que se enfraquecem o poder e a capacidade de articulação do governo Lula, nas mais importantes votações no Congresso.

Por decisão judicial, Bolsonaro está inelegível até 2030, mas não impedido de participar da campanha; por outro lado, não se sabe se Lula buscará o quarto mandato presidencial. Como também são desconhecidas as opções do ex-presidente e do presidente, por não poderem (Bolsonaro) ou não quererem (Lula) disputar a presidência em 2026.

Nesse contexto de interrogações, a luta de agora é travada em atritos, em boa parte pelas redes sociais, que afundam em um lamaçal mais espesso do que o de 2022. Vale tudo nesse jogo de perde-perde, até prender adolescentes engravidadas por estupradores, apenas para constranger um adversário político.