Entre o Estado e a Ordem: os bastidores do ensino jurídico no Brasil

A tensão entre o Ministério da Educação e a Ordem dos Advogados revela disputa de poder na definição da qualidade e identidade do ensino jurídico

Jamildo Melo

por Jamildo Melo

Publicado em 14/05/2025, às 09h26 - Atualizado às 09h45

Articulista comenta a disputa entre MEC e OAB pelo futuro da formação em Direito - Internet
Articulista comenta a disputa entre MEC e OAB pelo futuro da formação em Direito - Internet

Por Inácio Feitosa, em artigo especial para o site Jamildo.com

Durante os anos em que mergulhei na pesquisa que resultou na minha dissertação de mestrado — O Ensino Jurídico: uma análise dos discursos do MEC e da OAB no período de 1995 a 2002 — deparei-me com uma realidade que, ainda hoje, ressoa fortemente: o ensino jurídico no Brasil foi — e continua sendo — palco de uma disputa silenciosa entre dois atores centrais — o Estado, por meio do Ministério da Educação (MEC), e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Ambos alegaram zelar pela qualidade do curso de Direito, mas o fizeram a partir de lugares distintos de poder, discurso e interesse.

Minha investigação teve como foco o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), período marcado pela implantação de reformas neoliberais que redesenharam a estrutura do Estado brasileiro.

A partir do chamado Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo então ministro Bresser Pereira, consolidou-se uma nova forma de governança pública: a administração gerencial, orientada por valores como eficiência, flexibilização e avaliação por resultados.

Na educação superior, essa lógica produziu efeitos imediatos: o Estado passou de executor direto para regulador e avaliador. A universidade deixou de ser espaço exclusivamente público para tornar-se também mercadoria regulada por índices e selos de qualidade.

O ensino jurídico, por sua capilaridade e visibilidade, foi um dos primeiros a sentir os impactos dessa virada.

Em paralelo, a OAB, instituição tradicional e conservadora, viu com desconfiança as mudanças propostas pelo MEC. Enquanto o Ministério promoveu a revogação do currículo mínimo do curso de Direito (Portaria MEC nº 1.886/94) e implantou as Diretrizes Curriculares Nacionais (Parecer CES/CNE nº 146/2002), a OAB se posicionou como guardiã da qualidade do ensino, lançando mão de estratégias como o selo "OAB Recomenda" e a judicialização das medidas que considerava nocivas.

A minha tese central foi a de que o ensino jurídico, mais do que um campo educacional, se constituiu como território simbólico de poder. O que esteve em jogo não foi apenas a matriz curricular ou a duração do curso, mas a própria definição sobre o que significa formar um bacharel em Direito: um técnico, um pensador crítico, um servidor público, um empreendedor jurídico?

Essa disputa de sentidos ficou evidente nas entrevistas que realizei com ministros, conselheiros, gestores e dirigentes da OAB.

Ao aplicar a metodologia da Análise do Discurso, identifiquei que os textos normativos e os pronunciamentos institucionais estavam carregados de ideologias. A defesa da "autonomia universitária" feita pelo MEC escondia, muitas vezes, a desresponsabilização estatal.

Já a crítica da OAB à "mercantilização do ensino" frequentemente vinha acompanhada de interesses corporativos. Ambos os discursos, portanto, apresentaram motivações legítimas e contradições evidentes.

Passadas quase duas décadas, os dilemas investigados não perderam força. A expansão desordenada de cursos jurídicos, os baixos índices de aprovação no Exame da OAB e a desconexão entre teoria e prática continuam desafiando educadores, advogados e gestores públicos.

Se houve uma lição que colhi dessa pesquisa, foi a de que a melhoria do ensino jurídico brasileiro não virá de um único ator. Será necessário construir uma ponte entre Estado e Ordem, entre universidade e sociedade, entre tradição e inovação. O Direito — que é, por excelência, o campo do equilíbrio — precisa reencontrar sua vocação pedagógica.

No próximo artigo, explicarei por que deixei de usar a expressão “ensino jurídico” para adotar o termo “educação jurídica” — e como essa mudança conceitual pode transformar não apenas as salas de aula, mas o próprio papel do Direito na sociedade.

Inácio Feitosa é advogado, mestre em educação pela UFPE, diretor-geral da Editora da OAB-PE