Jamildo Melo | Publicado em 02/12/2025, às 15h36 - Atualizado às 15h50
Por David Monteiro e Patrícia de Pádua, em artigo enviado ao site Jamildo.com
O mercado imobiliário catarinense convive há décadas com uma contradição difícil de explicar a investidores: alguns dos metros quadrados mais valorizados do País são também aqueles sujeitos ao arcabouço dominial mais instável do Direito brasileiro.
A categoria dos terrenos de marinha, regulamentada pelo decreto-lei 9.760/1946 e definida pela oscilação da maré em 1831, tornou-se um fator de travamento de crédito, encarecimento de empreendimentos e retração de investimentos.
A combinação entre uma linha histórica de difícil reconstituição, a lentidão da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e a desatualização dos métodos técnicos fez com que imóveis avaliados em bilhões permanecessem sob insegurança crônica.
A obrigação legal de concluir a demarcação dos terrenos de marinha até 31 de dezembro de 2025, prevista no art. 11 do decreto-lei 9.760/1946, não deve ser cumprida em Santa Catarina. Relatórios técnicos da SPU revelam atraso acumulado no Plano Nacional de Caracterização e proposta de prorrogação da sua vigência para 2027, ao mesmo tempo que o estado sequer iniciou os trabalhos formais da Comissão de Demarcação.
Mesmo diante do atraso técnico, Santa Catarina permanece entre os estados que mais geram receita patrimonial à União. Dados recentes do sistema integrado de administração patrimonial apontam arrecadação superior a R$ 100 milhões em 2024 apenas com foro, taxa de ocupação e laudêmio, montante que reforça o interesse federal na regularização e no controle dominial da costa catarinense.
A economia sente os efeitos dessa incerteza. A ausência de um título de domínio sólido eleva custos financeiros, limita o uso de imóveis como garantia e reduz a liquidez de transações, especialmente em municípios com forte densidade imobiliária como Florianópolis, Itapema e Balneário Camboriú. Em um ambiente em que velocidade é diferencial competitivo, o passivo dominial tornou-se um freio institucional.
Nesse contexto, a Corregedoria-Geral da Justiça de Santa Catarina introduziu um ponto de inflexão. O provimento 49/2025, incorporado ao Código de Normas do Foro Extrajudicial, impõe novos critérios de qualificação registral que, ao exigir a formalização do domínio da União na matrícula, reduzem significativamente a névoa regulatória que há décadas assombra o litoral catarinense. Trata-se de um ato registral que produz impacto econômico direto, destravando operações e reequilibrando as relações entre agentes privados e a União.
A estruturação jurídica dos terrenos de Marinha, com a União titular do domínio direto e o particular detentor do domínio útil (no aforamento) ou de simples ocupação, sempre produziu um ambiente de alto risco. No aforamento, embora o particular detenha 83% do domínio, permanece sujeito a laudêmio e foro anual; na ocupação, o cenário é ainda mais restritivo: sem garantia real, sem incorporação e com entraves de natureza registral.
Somado a isso, o processo de demarcação, disciplinado pela Instrução Normativa SPU/SEDDM/ME 28/2022, carece de previsibilidade. A sobreposição entre regime federal, zoneamento municipal e normas ambientais produz um cenário que aumenta o custo de transação e dificulta modelagens de financiamento.
A jurisprudência reforça essa complexidade: embora o entendimento sumulado 496 do STJ reconheça que o registro particular não é oponível à União, decisões reiteradas exigem registro formal do domínio da União no Cartório de Registro de Imóveis para legitimar a cobrança de taxas e laudêmios, com fundamento no art. 2º da lei 9.636/1998.
Esse vácuo normativo abriu espaço para uma crise de confiança que o provimento catarinense busca suprir.
O art. 716-A do novo Código de Normas coloca o registro como núcleo da análise dominial: o imóvel só será tratado como terreno de marinha se houver na matrícula a formalização da propriedade federal resultante de demarcação efetivamente realizada.
A medida desloca a presunção histórica para um modelo de publicidade registral objetiva, atribuindo à União o ônus de demonstrar seu domínio. O §2º do mesmo dispositivo é ainda mais expressivo: referências genéricas à existência de “faixa de marinha” deixam de ser motivo para bloqueio de transmissões ou constituição de direitos reais.
Esta determinação inverte a lógica histórica. A presunção de que a área era de marinha, que antes bastava para travar o registro, cede lugar à exigência de formalidade registral.
O Judiciário catarinense, atuando como regulador do mercado de títulos, impõe à União o ônus de provar e formalizar seu domínio perante o registro público.
Na prática, imóveis sem demarcação formal passam a ser tratados como alodiais para fins registrais, sem impedir futura atuação da União, mas sem imobilizar o mercado. Para o investidor, o efeito é imediato: reduz-se o risco de paralisação do negócio na qualificação registral; para o registrador, o ato deixa de depender de presunções imprecisas; para o mercado como um todo, abre-se espaço para liquidez e previsibilidade.
Um dos pontos mais relevantes é a admissão da usucapião extrajudicial em áreas não demarcadas pela União, conforme o art. 716-G. Historicamente, a tese de que não cabe usucapião contra a União era um obstáculo intransponível. O provimento permite o processamento da usucapião em imóveis em nome de particulares ou sem matrícula anterior que não tenham sido objeto de demarcação.
Embora o art. 716-G, §2º reitere que o deferimento da usucapião não impede a demarcação futura pela União, o ato registral da usucapião é crucial. Ele serve como prova idônea de efetivo aproveitamento e posse mansa e pacífica, requisitos essenciais para a posterior regularização junto à SPU, como a obtenção de uma inscrição de ocupação.
A usucapião, neste contexto, não é um ato de aquisição contra a União, mas um instrumento de saneamento registral que prepara o imóvel para a regularização federal.
Outra inovação de grande impacto para o mercado de incorporação é a possibilidade de unificação de imóveis alodiais (propriedade plena, livre de quaisquer ônus, encargos, vínculos ou direitos senhoriais) e aforados em uma mesma matrícula, prevista no art. 716-C. Essa medida é vital para empreendimentos de grande porte que se estendem por áreas de domínio misto.
O provimento permite a unificação para a execução de empreendimentos que exijam destinação comum, como loteamentos e incorporações, dispensando a autorização da SPU para o ato de unificação e para o registro do parcelamento do solo e da incorporação imobiliária (art. 716-C, §4º).
Ao permitir a unificação e o registro de empreendimentos sem a morosa anuência prévia da SPU, o provimento reduz o "tempo de prateleira" dos projetos, diminuindo o custo financeiro da espera e acelerando a oferta de unidades no mercado.
O provimento 49/2025 cria uma tensão institucional saudável, mas que se agrava com a situação atual dos procedimentos demarcatórios em SC. O cenário é de dupla via: de um lado, o Judiciário estadual exige a formalidade registral para dar segurança ao mercado; de outro, a União demonstra um esforço renovado para cumprir seu dever constitucional de demarcar. O horizonte temporal é crucial.
O decreto-lei que rege o tema autoriza a SPU a concluir a demarcação dos terrenos de Marinha até 31 de dezembro de 2025. A inércia da SPU após essa data, combinada com a nova diretriz do TJSC, fortalece a tese da presunção de propriedade privada para fins de registro e as implicações político-econômicas são profundas.
O provimento 49/2025 da CGJ/SC é um marco na história do Direito Imobiliário catarinense. Ao impor a formalidade registral como condição para o reconhecimento de um terreno de marinha, o Judiciário estadual exerceu seu poder regulatório sobre os serviços notariais e de registro, injetando a tão necessária segurança jurídica no mercado.
O ato transforma a incerteza em ativo, permitindo que o capital imobiliário circule com mais liberdade e menor custo de risco. A nova regra beneficia diretamente o mercado, o proprietário e o município, que ganha em planejamento e arrecadação.
Aos advogados, investidores e gestores, a estratégia deve ser dupla: (i) aproveitar as novas ferramentas: a exigência de matrícula, a usucapião extrajudicial e a unificação de áreas para promover o saneamento registral imediato dos imóveis; (ii) manter cautela estratégica, pois o risco de uma demarcação futura pela União ainda existe, exigindo que a regularização junto à SPU seja o objetivo final, transformando a posse precária em domínio útil ou propriedade plena via remissão de foro.
Esse provimento é a prova de que a modernização do Direito Registral pode ser um poderoso motor para o desenvolvimento econômico, transformando um passivo histórico em um horizonte de oportunidades.
PS do site: David Monteiro é advogado da área Imobiliária do Martinelli Advogados. Patrícia de Pádua é sócia do Martinelli Advogados
Superintendente da Caixa projeta R$ 8 bi em crédito e vê "batalha" positiva entre Estado e Recife por habitação
Mutirão da SPU-PE e do setor imobilinário busca destravar empreendimentos em áreas de marinha
João Campos, Caixa e SPU articulam destravar terrenos da União no Recife, abrindo acesso a novos recursos do FGTS para habitação