Armas de gel e a banalização da violência

Em Pernambuco, deputado apresentou projeto para barrar armas de gel. No mundo real, um adolescente é morto na região metropolitana a cada 4 dias

Ana Maria Franca e Lara Pirro | Publicado em 10/12/2024, às 08h15 - Atualizado às 08h24

Armas de gel têm se popularizado nas redes sociais entre os jovens - Reprodução
Armas de gel têm se popularizado nas redes sociais entre os jovens - Reprodução

Por Ana Maria Franca e Lara Pirro, em artigo enviado ao site Jamildo.com

Você já deve ter tomado conhecimento da febre do momento: as armas com munição de gel. São armas que simulam metralhadoras, fuzis, pistolas, inclusive na quantidade de disparos. Elas são municiadas por bolinhas que, ao entrarem em contato com a água, crescem e ganham uma textura gelatinosa. O que, a princípio, parece uma nova brincadeira, tornou-se uma ameaça à segurança e à saúde públicas.

No dia 26 de novembro, José Adilson Bezerra Sabino foi morto a tiros durante uma discussão que começou devido a uma dessas batalhas com armas de gel, no Córrego do Abacaxi, Olinda, Pernambuco. O crime ganhou repercussão e dividiu a opinião pública: há quem defenda que foi um crime por motivo banal, e há aqueles que acreditam que o erro está em se envolver na brincadeira, pois os tiros disparados por essas armas podem atingir pessoas de fora das batalhas, e inclusive, feri-las.

Os partidários da segunda posição não estão equivocados. Somente entre os dias 30 de novembro e 03 de dezembro, a Fundação Altino Ventura, que atua como uma emergência oftalmológica, contabilizou mais de 20 atendimentos com a queixa de dor ocular causada pelas bolinhas de gel disparadas por esse tipo de arma. Ainda no dia 03 de dezembro, uma criança de 9 anos foi atingida no olho e precisou passar por cirurgia para tratar a lesão.

A brincadeira se popularizou e se espalhou como rastilho de pólvora. É possível ver ambulantes e lojas nos centros das grandes cidades vendendo tanto as armas quanto o seu tipo de munição. Nos estados nos quais o Fogo Cruzado atua, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Pará, os registros de batalhas com armas de gel são recorrentes. Mas onde é que a brincadeira tem ganhado aderência? Sobretudo em bairros com altos índices de vulnerabilidade social. As cenas das batalhas, que arrastam dezenas de jovens, têm gerado vídeos virais e eles são também parte da atração gerada pelas armas de brinquedo.

A brincadeira, que se tornou um problema de saúde, também tem se tornado um problema de segurança pública. A primeira vítima direta em Recife foi José Adilson, mas outros episódios apontam os riscos. No dia 04 de dezembro, um motorista que passava em meio a uma dessas batalhas disparou contra os participantes a fim de abrir caminho. Por sorte, não houve feridos. Outro vídeo que circula na internet mostra uma viatura policial passando em alta velocidade e, para dispersar os participantes, um dos policiais atira. Embora não tenha havido feridos, o risco era evidente.

No Rio, em outubro, a arma de gel levou um mototaxista à morte. Pedro Henrique Figueiredo estava trabalhando quando, em Jacarepaguá, na Zona Oeste, foi parado por milicianos que revistaram seu celular. No aparelho eles encontraram fotos do Pedro com uma arma de gel. Por conta disso, ele foi executado.

A legislação brasileira prevê, desde 1997, a proibição da venda e fabricação de armas e simulacros de arma de fogo, permitindo sua utilização apenas em casos específicos, como adestramento, instrução e colecionadores autorizados. Em 2003, quando o Estatuto do Desarmamento foi aprovado, essa proibição foi mantida.

Segundo a Secretária da Defesa Social de Pernambuco, réplicas como as armas de gel são comparáveis a equipamentos de airsoft e paintball, regulamentados por normas federais. O Decreto nº 11.615, de 21 de julho de 2023, reconhece as armas de airsoft como dispositivos de uso recreativo e esportivo, destinadas exclusivamente para as práticas esportivas ou recreativas. Ainda assim, essa prática só é permitida aos maiores de quatorze anos. Portanto, as armas de gel não são compreendidas como simulacro da arma de fogo, embora exista uma lei que proíba a venda e circulação delas.

Nos últimos anos, impulsionada pela flexibilização da legislação de armas e munições no Brasil, aconteceu uma lenta mudança cultural no que se refere ao porte e à posse desses artefatos. As armas de fogo entraram na moda, os clubes de tiro tornaram-se espaços de sociabilidade para as famílias e pouco a pouco cresce a banalização dos riscos que pistolas e fuzis trazem para a vida das pessoas. Não é surpreendente que, em 2024, a forma de lazer que se populariza seja uma guerra de armas de brinquedo com algum potencial ofensivo.

A pergunta que fica é: por que é lúdica uma forma de lazer relacionada à violência em um país onde mais de 33 mil pessoas são mortas por arma de fogo por ano? Tomemos o exemplo do Grande Recife, que há décadas convive com grande mortalidade de adolescentes. Conforme a série histórica do Fogo Cruzado, 9 adolescentes são baleados na região todos os meses. A maioria deles morre. Um adolescente é morto na região metropolitana de Recife a cada 4 dias. Apenas em 2024, mapeamos 263 meninos e meninas de até 18 anos baleados nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belém e Rio de Janeiro.

Armas de fogo trazem risco à vida das pessoas, são parte de uma tragédia que persiste no Brasil há décadas e elas precisam voltar a ser encaradas dessa forma. Afinal, quais são as consequências quando a violência é tratada de maneira divertida? Para onde a cultura que celebra armas de fogo nos levará? Algumas possíveis respostas a essas questões aparecem todos os dias nos jornais com os repetidos “incidentes” envolvendo armas nas mãos de civis. Não podemos perder de vista a verdadeira e única função desses objetos, para não esquecermos que não deveriam ser aceitáveis em nosso cotidiano.

Ana Maria Franca é coordenadora regional do Instituto Fogo Cruzado em Pernambuco

Lara Pirro é analista de dados do Fogo Cruzado em Pernambuco

@blogdojamildo