O Agente da Cultura: quando o frevo encontra a democracia

Agente Secreto, nova produção do cineasta pernambucano Kleber Mendonça, foi selecionada para Cannes em 2025 e vai representar Brasil no Oscar de 2026

Adriana Calado de Lemos Lins e José Durval de Lemos Lins Filho | Publicado em 03/11/2025, às 08h21 - Atualizado às 08h41

Kleber Mendonça Filho opera câmera ao lado de Wagner Moura, que sorri
Pernambucano, Kleber Mendonça gravou a maioria das cenas de O Agente Secreto no Recife - Divulgação

Por Adriana Calado de Lemos Lins  e José Durval de Lemos Lins Filho, em artigo enviado ao site Jamildo.com

Recife, 1977. Sob o manto opressivo da ditadura militar, um homem comum é aliciado para se tornar informante do regime – eis o ponto de partida de O Agente Secreto, neo-noir político de Kleber Mendonça Filho, estrelado por Wagner Moura.

O filme retrata a normalização da violência política, a paranoia institucionalizada e a perseguição a dissidentes, compondo um panorama sufocante do autoritarismo brasileiro dos anos 1970.

Temas caros à filmografia de do aclamado diretor – memória coletiva, identidade e resistência – perpassam a obra: lugares como o histórico Cinema São Luiz, no centro do Recife, funcionam como repositórios de lembranças e testemunhas dos traumas do passado, numa luta contra o esquecimento imposto pelo regime.

Nesse thriller denso e estiloso, mescla-se suspense e crítica social para refletir sobre a história e a identidade brasileiras, criando uma narrativa que, ao revisitar as sombras da ditadura, lança luz sobre as tensões políticas do presente.

O resultado é uma obra cinematográfica aclamada – selecionada para Cannes em 2025 e escolhida para representar o Brasil no Oscar de 2026 – que nos instiga a valorizar a liberdade e a democracia conquistadas a duras penas.

Assistir a O Agente Secreto é compreender que a arte, no Brasil — e, em especial, em Pernambuco —, é trincheira e voz.

Do frevo que desafia o compasso, ao maracatu que reafirma ancestralidades, das cirandas de Lia de Itamaracá aos acordes de Chico Science, o povo pernambucano aprendeu a transformar cultura em resistência e beleza em cidadania.

Essa herança é o substrato sobre o qual se erguem cineastas e outros atores, que fazem da câmera uma ferramenta de crítica social e de afirmação de liberdade.

Quando a sociedade financia a cultura, ela investe em si mesma. Não se trata de gasto, mas de investimento em sensibilidade, em pensamento crítico e em autoestima nacional.

O cinema de Mendonça, a música de Chico, o teatro de Ariano, o frevo de Capiba — todos são expressões de uma mesma política de emancipação simbólica.

São testemunhos vivos de que a cultura é o coração pulsante de uma nação democrática.

É por isso que os mecanismos de fomento à cultura — da Lei Rouanet aos editais
estaduais, passando pelo Fundo Setorial do Audiovisual — não são favores, mas instrumentos de
manutenção da própria democracia.

Eles garantem que o Recife continue a produzir sua poética urbana, que o sertão continue a cantar suas dores e amores, que o Brasil continue a se enxergar em suas múltiplas linguagens.

O Brasil possui, ainda que fragilizados, mecanismos estruturantes de incentivo à produção artística — a Lei Rouanet, os editais estaduais e municipais, os fundos setoriais e as parcerias com universidades e coletivos independentes.

Tais instrumentos não são privilégios de artistas; são o cimento que sustenta a democracia cultural, que descentraliza oportunidades e dá visibilidade às narrativas periféricas, indígenas, negras e populares.

Investir em cultura traz retornos multiplicadores. Segundo dados oficiais, a economia
criativa já corresponde a mais de 3% do PIB nacional e emprega 7,5 milhões de brasileiros. Um
estudo da Fundação Getúlio Vargas demonstrou que, para cada 1 real incentivado em projetos
culturais, R$ 1,60 retorna para a economia em movimentação de setores diversos.

Mas para além dos números, há um ganho imaterial e incalculável: “É na cultura que mora a alma do povo, o
encantamento da vida, a liberdade de pensamento e a prática da cidadania”. Esse belo enunciado
traduz a dimensão civilizacional do fazer cultural.

Apoiar a produção artística significa fortalecer as bases da democracia, pois uma sociedade que se expressa livremente, que conhece sua história e valoriza sua identidade, é menos suscetível às trevas da ignorância e do autoritarismo.

Não por acaso, Herbert de Souza (Betinho) alertava que “a democracia é incompatível com a miséria” – e essa miséria não é só a fome do corpo, mas também a carência de educação e cultura que empobrece espíritos.

Nenhum regime verdadeiramente democrático convive com a exclusão; por isso, as políticas culturais têm um viés profundamente inclusivo, levando arte e conhecimento às periferias, revelando talentos nas comunidades e gerando oportunidade onde antes havia abandono. Onde o Estado negligencia o incentivo cultural, instala-se o deserto da imaginação, e com ele o autoritarismo floresce.

A cultura é o espaço onde o povo se reconhece como sujeito histórico. Ela é, nas palavras de Caetano Veloso, o lembrete de que gente é para brilhar; não para morrer de fome.

Pernambuco, com sua tradição de rebeldia e criatividade, é a prova viva dessa verdade: cada maracatu que desce à rua, cada frevista que desafia o sol, cada cineasta que filma o cotidiano recifense reafirma que a democracia também se dança, se canta e se projeta na tela.

A cultura, afinal, é um ato de justiça social. É ela que recorda, que provoca, que educa. Que O Agente Secreto continue a nos lembrar que a arte é o mais belo ato de resistência, e que proteger a cultura

Adriana Calado de Lemos Lins é Conselheira Estadual e Presidente da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PE.

José Durval de Lemos Lins Filho é Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade de Pernambuco. Diretor da Faculdade de Administração e Direito da Universidade de Pernambuco (FCAP/UPE) e Presidente da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PE. Advogado.