Concessão Parcial da Compesa, revelada pelo site Jamildo.com no final de 2023, entra em discussão pública, com debates e audiências públicas
Rosa Freitas | Publicado em 30/01/2025, às 08h19
Por Rosa Freitas, especial para o site Jamildo.com
O debate sobre a privatização de parte das atividades da Companhia Pernambucana de Saneamento e Abastecimento (COMPESA) começa a ganhar corpo. Sua natureza jurídica é a de uma Sociedade Anônima de Economia Mista, com fins de utilidade pública. A COMPESA está vinculada ao Governo do Estado de Pernambuco por meio da Secretaria de Recursos Hídricos e Saneamento. Criada pela Lei Estadual n.° 6.307, de 29 de julho de 1971, a companhia tem o objetivo de levar água e esgotamento sanitário aos pernambucanos.
Quase todos os 184 municípios do Estado, incluindo o distrito de Fernando de Noronha, estão na rota de trabalho da companhia.
O Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco elaborou um Painel de Saneamento, que revela que apenas 30,8% da população do Estado dispõe de serviços de coleta de esgoto, enquanto 83,56% têm acesso à água. Esses números estão abaixo das médias nacionais, que são, respectivamente, 84% para água e 55,81% para esgoto. No Recife, os serviços de água e esgoto são disponibilizados a 96,43% e 44,99% da população, respectivamente. O Painel de Saneamento aponta ainda que, das localidades avaliadas, apenas 21 (12%) oferecem água a 100% de seus habitantes.
Muitos de nós temos críticas em relação às atividades da COMPESA, especialmente no que diz respeito à interrupção do abastecimento, à ausência de saneamento e aos atrasos nos programas de expansão.
Para esclarecer o tema, vamos entender suas nuances: (a) a COMPESA pode ser privatizada e esse é o projeto do Governo do Estado? (b) Qual é o regime normativo que fundamenta essa possibilidade? (c) Já houve privatizações semelhantes em lugares do Brasil ou do mundo? (d) Isso seria positivo para a comunidade, com base nas experiências de privatização brasileira? (e) Para onde iriam os recursos auferidos com a venda parcial da companhia?
A Lei do Saneamento é a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Em 2020, foi alterada pela Lei nº 14.026/2020, conhecida como o Novo Marco Legal do Saneamento Básico. A previsão da lei permite o investimento privado na área de saneamento na forma de Parcerias Público-Privadas (PPP).
Seria possível a privatização da companhia, mas não é esse o caso. O que pretende o governo estadual é transferir a parte da exploração do serviço de abastecimento e saneamento para a iniciativa privada mediante concessão.
A Lei do Saneamento prevê, no art. 10, que "a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, nos termos do art. 175 da Constituição Federal, vedada a sua disciplina mediante contrato de programa, convênio, termo de parceria ou outros instrumentos de natureza precária".
O art. 10-A, introduzido em 2020, ainda prevê as condições da concessão, permitindo a outorga dos recursos hídricos para a concessionária. Além disso, o contrato pode utilizar arbitragem e outros meios de resolução de conflitos e deve estabelecer as áreas de expansão do serviço de abastecimento e saneamento.
Um dos grandes desafios do saneamento e abastecimento é o fato de que o serviço exige um grande investimento de capital e, como outros serviços públicos essenciais, opera de forma deficitária. A única empresa de saneamento no Brasil que não é deficitária é a SABESP. Informo isso porque as empresas de saneamento têm imunidades tributárias estendidas a si justamente por operarem com prejuízos e, em geral, terem monopólio dentro do Estado.
Do ponto de vista público, a situação deficitária de uma empresa pública que exerce atividades de impacto e importância social é irrelevante, desde que o benefício social perseguido se justifique. Desde a criação do modelo, ainda hoje debatido no keynesianismo, o investimento estatal sem retorno é fundamental para o desenvolvimento econômico. Os sistemas de transporte público de metrô do mundo cumprem essa função. O que não podemos é imaginar que um investidor privado consiga suportar uma operação com prejuízos, nas dimensões do serviço de abastecimento e por longo tempo.
Muitos analistas criticaram a possibilidade de concessão dos serviços de água e saneamento, pois os investidores privados dificilmente conseguiriam realizar os investimentos necessários para a melhoria do serviço e a ampliação da área de cobertura, sem onerar demasiadamente as tarifas dos serviços.
Em Pernambuco, uma PPP com a BRK Ambiental foi celebrada em 2013 com a finalidade de ampliar a rede de saneamento do Grande Recife, com a meta de atingir 90% dos domicílios da região metropolitana até 2025. No entanto, até o momento, apenas 38% da rede foi saneada.
Na década de 1990, tivemos um processo paulatino de privatizações. A privatização que mais sentimos foi a dos serviços de iluminação pública. Durante décadas, o Brasil foi iluminado por grandes investimentos públicos, com empresas em todos os estados que operavam o serviço público de geração e distribuição de energia elétrica.
Esse processo pode ter sido avaliado como positivo por muitos anos, mas, nos últimos três anos, enfrentamos uma série interminável de problemas, como a situação da ENEL em São Paulo, com interrupções de serviço que duravam dias e a saturação do sistema, sem que houvesse a substituição de cabos e fios. O sistema opera com postes de mais de 30 anos, sem a substituição de equipamentos básicos, como transformadores. Apesar de tantos atropelos, os investidores mantiveram a remuneração de capital e distribuíram dividendos. As principais empresas de distribuição de energia elétrica no Brasil incluem Alupar, AES, Celesc, Cemig, CPFL, Copel, Eletrobras, Eneva, Energisa e Equatorial. Algumas dessas empresas são Neoenergia, Copel (PR), ESS (SP), Coelba (BA), Elektro (SP), Cemig (MG), CPFL-Piratininga, COPEL-DIS, CEB-DIS e CELESC-DIS.
Mais de 25 anos depois, estamos sentindo os efeitos da falta de investimento dessas empresas e dos desafios de regulação. Os problemas nas agências reguladoras são conhecidos por todos, sendo o principal, sem dúvidas, a captura do setor regulado por grandes corporações. Antes CEO das empresas concessionárias ocupam cargos importantes na ANEL e egressos da agência nas empresas.
No âmbito internacional, uma experiência extremamente negativa de privatização foi a guerra da água na Bolívia, que ocorreu na cidade de Cochabamba. Devido ao encarecimento do serviço para a população e à revolta da sociedade, foi necessária a reestatização do serviço, o que culminou em um processo milionário contra o Estado boliviano.
A pretensão de transferir a iniciativa privada parte dos serviços prestados pela COMPESA pode até melhorar o serviço de distribuição, mas, com certeza, vai encarecer a tarifa e, por conseguinte, o preço de bens, serviços e custos domésticos.
O argumento do presidente da Companhia Alex Campos é que não a privatização (com venda dos ativos da companhia), mas a exploração pela iniciativa privada, naquilo que orienta a Lei do Saneamento. Do ponto de vista legal, não é qualquer impasse jurídico, porém, quanto à conveniência política e o aumento de custos das tarifas pode não ser a melhor alternativa.
O ODS 6 é o objetivo de desenvolvimento sustentável que visa garantir o acesso universal e equitativo à água potável e ao saneamento básico. Esse objetivo está presente na Agenda 2030. Porém, o Brasil já estendeu um pouco o prazo. De acordo com o art. 11-B: "os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento".
Nós estamos muito longe de cumprirmos os compromissos firmados do Brasil junto a ONU, conforme os ODSs e de acordo com a Agenda 2030.
No recorte regional, a Região Norte é a que tem menor índice de atendimento total de esgoto, chegando a 13,1%. Já o Sudeste lidera o índice de atendimento total, com 80,5%. Em seguida vem o Centro-Oeste (59,5%), o Sul (47,4%), e o Nordeste (30,3%), com dados do próprio IBGE de 2022.
É importante lembrar que, além dos desafios governamentais de viabilizar o acesso à água e ao saneamento, há também a redução dos recursos hídricos.
Participei de um evento em 2024, na FIEPE, e uma das palestrantes era a presidente da APAC, Suzana Maria Gico Lima Montenegro, que também é professora da UFPE e possui ampla experiência e conhecimento na área. Em sua apresentação técnica, uma das questões levantadas foi o estresse hídrico, com a previsão de redução de 40% das chuvas e o processo de desertificação no semiárido.
Caso houvesse a venda de parte dos ativos da companhia os recursos seriam destinados ao Tesouro Estadual e aplicados conforme os projetos e áreas de interesse do estado. Para que a privatização de parte da companhia seja realizada, é imprescindível a autorização da Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE).
Mas não é esse o caso. O que a COMPESA pretende é que a prestação dos serviços sejam realizada pela iniciativa privada na modalidade concessão. Considera que essa opção seria vantajosa pois permitiria que a empresa se concentrasse nas suas atividade mais diretas como a gestão dos recursos hídricos. Outro ponto seria a alocação de investimentos privados. Essa foi a estratégia da Lei do Saneamento como expomos anterior.
Vale lembrar ainda que o aproveitamento dos recursos hídricos constitui patrimônio estadual, na forma do art. 219 e seguintes da Constituição do Estado de Pernambuco.
A COMPESA não possui a melhor governança, apesar dos esforços, mas talvez isso não seja motivo suficiente para a concessão do serviço à iniciativa privada. A mesma dinâmica quanto à possibilidade de concessão dos serviços de distribuição também poderia ser aplicada ao serviço de coleta de resíduos sólidos. Os resíduos sólidos são geralmente terceirizados, ou a coleta é realizada pela própria municipalidade, em municípios pequenos. Em geral, a destinação é realizada por meio de sistemas de consórcios públicos.
Acredito que é viável, do ponto de vista jurídico, a concessão dos serviços de distribuição de água de forma segmentada e até mesmo seria privatização. Em geral, as empresas concessionárias apresentam uma governança mais eficiente e ha melhorias na prestação do serviço. Contudo, atrelar a ineficiência e a má gestão às empresas públicas é, no mínimo, uma interpretação ideológica reducionista. O Banco do Brasil, por exemplo, possui excelente governança, apesar de ser também uma sociedade de economia mista, inclusive com capital negociado em bolsa.
No caso das concessões, ainda temos muito a melhorar em termos de fiscalização das agências reguladoras. Continuamos sendo reincidentes na captura econômica do setor regulado e enfrentamos intensa litigiosidade. As empresas de telefonia são um grande exemplo de como a ampliação do serviço pode ocorrer com um aumento proporcional da insatisfação, do compartilhamento indevido de dados e da judicialização.
Além das dificuldades e desafios inerentes à concessão em si, enfrentamos um momento delicado do ponto de vista climático.
Antes e acima de qualquer decisão, é necessário que a sociedade civil organizada e os debates políticos sejam realizados nas audiências públicas. Outro ponto foi que haveria uma tarifa social custeada por recursos públicos para garantir o acesso ao serviço essencial para pessoas de baixa renda.
As audiências públicas precisam contar com participação efetiva da sociedade. Como se trata de uma decisão de grande impacto social, econômico e político, é fundamental que haja amadurecimento e clareza, ou seja, a decisão precisa ser democrática.
Rosa Freitas é doutora em Direito, advogada consultora Igeduc e autora de "A Reforma.a tributária e seus impactos nos municípios".
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