Artigo aborda o debate sobre o ITCMD devido pelas herdeiras de Sílvio Santos dos bens localizados no exterior.
Rosa Freitas | Publicado em 13/01/2025, às 08h32
Um caso muitíssimo interessante ganhou destaque no noticiário: a possibilidade de cobrança de 17 milhões de reais de Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), incidente sobre a herança de Silvio Santos.
Os valores da herança estavam depositados em uma conta do empresário nas Bahamas, que pode ser considerado um paraíso fiscal, ou seja, países com menos fiscalização e normas tributárias mais benéficas do que aquelas existentes no resto do mundo. Lá, as transmissões não têm incidência de impostos, o que favorece grandes fortunas e atrai investidores e sonegadores.
Decidiu o juiz Fonseca Pires, da 3ª Vara da Fazenda do Município de São Paulo: "Ante o exposto, defiro a tutela de urgência para que haja a imediata suspensão da exigibilidade da parcela controversa do tributo ITCMD, no montante apurado pelas partes autoras e depositado às fls. 495-516, até o julgamento final da presente demanda, (…) e para determinar o impedimento de inscrição das autoras nos serviços de proteção ao crédito (CADIN, SERASA e outros), se os motivos para tanto forem os débitos aqui debatidos."
O debate vai continuar, já que se trata de uma decisão liminar.
O ITCMD é um imposto estadual, com alíquota máxima de 8%. No caso, o Estado de São Paulo seria o titular deste recurso. O juiz paulista conferiu uma liminar que beneficiou as herdeiras e determinou que, a princípio, não deveria ser feito o recolhimento, devendo proceder ao depósito em juízo até o final da lide.
Observando o cenário, considero que precisamos avaliar algumas questões sobre o tema para que tenhamos uma visão clara sobre a matéria.
Alguns pontos devem guiar nossa abordagem: (1) qual é o direito aplicável ao de cujus e às herdeiras? (2) a incidência do imposto é de qual país? (3) existe alguma jurisprudência sobre o tema? (4) o que muda com a reforma tributária?
A primeira questão que precisamos retomar diz respeito ao dispositivo da LINDB (Decreto n.º 4.657/1942), que, no artigo 10, prevê disposições sobre a herança:
Art. 10. A sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que estiver domiciliado o falecido ou o desaparecido, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens.
§ 1º A sucessão de bens de estrangeiros situados no país será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus.
§ 2º A lei do domicílio do herdeiro ou legatário regula a capacidade para suceder.
Assim, dois aspectos do debate estão resolvidos: (a) aplica-se a lei brasileira no que se refere ao direito sucessório, uma vez que o falecido residia no Brasil; e (b) também se aplica o direito brasileiro às herdeiras no que diz respeito à capacidade para suceder.
No que diz respeito à competência jurisdicional, o CPC de 2015 (Lei 13.105/2015), que reproduziu o CPC de 1978, prevê:
Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:
II - em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento particular, ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.
Esse dispositivo gera dúvidas, pois se aplica aos bens situados no Brasil, mas não menciona os bens localizados no exterior. No caso, os bens móveis, como os valores depositados nas Bahamas, estão fora do país. As herdeiras não seriam, a princípio, obrigadas a proceder ao inventário e à partilha desses valores aqui no Brasil, uma vez que, em regra, os bens estão situados fora do território nacional.
Entretanto, foi opção das partes conduzir o processo no Brasil, trazendo para sua composição os bens a serem inventariados e partilhados, seja por meio de processo judicial ou extrajudicial. Se a legislação local (Bahamas) permitiu essa escolha, não vejo obstáculos. Além disso, os paraísos fiscais não costumam seguir acordos internacionais de evasão de divisas, como o BEPS (Decreto n.º 8.842/2016), o que nos leva a supor que tais bens não tenham sido declarados, e que o inventário serviria como uma forma de regularização.
Entretanto, se a situação fosse como a prevista na legislação brasileira, que fixa a competência local e há tributação no exterior, considero que não seria viável uma nova tributação local, de acordo com o princípio da vedação à bitributação. Se, de fato, as herdeiras optaram por concentrar no Brasil as operações de partilha dos bens, seria adequada a interpretação da legislação tributária brasileira. Assim, não vejo qualquer incongruência na exigência do tributo pelo Fisco paulista.
A princípio a atuação legislação tributária brasileira somente não seria aplicável se houvesse bitributação, o que não parece ser o caso. No mais, a opção das herdeiras por repatriar os recursos e incluir como patrimônio partilhado cumpre outras funções de regularização.
O ITCMD normalmente é cobrado no estado onde se encontra o imóvel, mas ainda não foram criadas regras específicas para os bens situados no exterior.
No caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal em 2021, no julgamento do Tema 825, envolve um italiano que faleceu e deixou bens na Itália para um herdeiro em São Paulo. O estado cobrou o ITCMD sobre os bens herdados por esse homem, mas a Corte decidiu que a cobrança não caberia. O entendimento foi de repercussão geral, aplicando-se a situações semelhantes em outras instâncias judiciais.
Assim versa o Tema 825: "Possibilidade de os Estados-membros fazerem uso de sua competência legislativa plena, com fulcro no art. 24, § 3º, da Constituição e no art. 34, § 3º, do ADCT, ante a omissão do legislador nacional em estabelecer as normas gerais pertinentes à competência para instituir o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação de quaisquer Bens ou Direitos — ITCMD, nas hipóteses previstas no art. 155, § 1º, III, a e b, da Lei Maior".
Contudo, considero que esse entendimento não seja aplicável às herdeiras de Silvio Santos. Ao utilizarmos a técnica do "distinguishing" ou distinção, observamos que ela se aplica quando o falecido reside no exterior. Na situação analisada, o de cujus residia no Brasil e suas herdeiras também, além de o inventário ocorrer no Brasil. Esses três elementos conjugados atraem a jurisdição do país.
Não seria adequado aplicar a solução prevista no Tema 825, pois isso criaria um precedente negativo que poderia facilitar a evasão de divisas, permitindo que um residente no Brasil alocasse seus recursos fora do território nacional para evitar a incidência dos impostos de transmissão cobrados no país.
Na abertura do inventário, há o fim da escolha do estado de processamento. A Emenda Constitucional 132 deslocou a competência do imposto relativo a bens móveis, títulos e créditos, que antes pertencia ao estado onde se processava o inventário ou arrolamento, para o estado onde era domiciliado o de cujus.
Nesse sentido, o PLP 108 prevê que o inventário deverá ser processado no estado onde o de cujus era domiciliado.
Essa mudança, que já vale para as sucessões abertas a partir da data de publicação da EC 132, impede que o contribuinte escolha o estado para o processamento do inventário extrajudicial, o que anteriormente permitia certa flexibilidade na escolha de um local onde a tributação era menor. A reforma, no entanto, não aborda a questão da herança com patrimônio no exterior e falecido residente no Brasil.
Não entendi se os 17 milhões se referem à totalidade da herança ou apenas ao quinhão. A partir da reforma tributária, o imposto incide sobre o quinhão, o que é mais benéfico para o contribuinte.
Considero que se aplica a legislação brasileira, pois o falecido residia no Brasil, e o inventário e a partilha dos bens estão sendo processados no Brasil. Além disso, uma interpretação diversa poderia conduzir à evasão de divisas de grandes fortunas, justamente para evitar o cumprimento da obrigação a todos imposta de recolher o ITCMD.
Ainda que houvesse a transmissão do quinhão para o exterior, e observando-se o caso concreto, onde se verificasse o intuito de fraudar a lei brasileira, poderia haver a atuação do Fisco brasileiro.
Infelizmente, a reforma tributária não resolve o problema dos bens situados no exterior de falecidos com domicílio no Brasil de forma clara. Contudo, ao aplicar o caput do art. 10 da LINDB, considero legítima a pretensão do Fisco do Estado de São Paulo.
Rosa Freitas é doutora em Direito, advogada, consultora do Instituto Igeduc e autora do livro "A Reforma Tributária e seus impactos nos Estados e municípios", pela Editora Igeduc.
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