O Agente Secreto e Lady Tempestade: ecos da mesma ferida. Artigo escrito por Celso P. de Melo, professor Titular aposentado da UFPE
por Celso P. de Melo
Publicado em 25/11/2025, às 16h07
Aconteceu na mesma semana, na mesma cidade, quase no mesmo fôlego: numa tarde abafada da cidade do Recife, sentei-me no cinema da Fundação Joaquim Nabuco para ver O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho; dois dias depois, ocupei uma poltrona no Teatro Santa Isabel para acompanhar Lady Tempestade, peça baseada nos diários da advogada Mércia Albuquerque e interpretada por Andrea Beltrão.
Saí de ambas as salas com a sensação inconfundível de que tinha atravessado a mesma geografia emocional, ainda que por caminhos distintos: a ficção cinematográfica e o documento dramático, ambos enraizados no Recife dos anos 1970 – aquele lugar onde a fronteira entre Estado e violência se dissolvia como as bolinhas de naftalina que ajudam a preservar a memória.
A ficção do filme e o documento dramático da peça se tocam como dois vidros trincados pela mesma pancada. Ambos refletem, com pudor e coragem, o clima espesso do Brasil dos anos 1970, quando Estado e violência caminhavam juntos, e onde a vida de gente que poderia ser qualquer um se perdia sem testemunha, sem registro, sem luto permitido.
No filme, Marcelo – interpretado com precisão dolorida por Wagner Moura – tenta escapar de uma sentença de morte imposta por um empresário poderoso, figura que remete de forma inquietante ao “cidadão Boilesen”, o industrial que financiou e participou ativamente da engrenagem da tortura no Brasil da ditadura. A perseguição é movida pelo dinheiro, pela vingança e por aquilo que, nos anos de chumbo, chamavam de “higienização política”.
Em seu desespero, ele cruza seu caminho com o Dr. Euclides, delegado interpretado com frieza calculada por Robério Diógenes – uma presença que paira entre a ameaça e algo que se poderia confundir com interesse genuíno. Não há generosidade ali, apenas a lógica torta dos anos 70: um homem capaz, no mesmo gesto, de salvar e condenar. Ele é um dos “gafanhotos”, como Mércia chamava os agentes da repressão – pessoas que podiam entrar em qualquer canto, sugar qualquer vida e desaparecer com a mesma rapidez. Quando vemos Dr. Euclides na tela, selvagemente banal, sentimos a respiração dos gafanhotos de Mércia na nuca. A ficção encontra o documento; a alegoria encontra o testemunho. O enredo avança entre silêncios, poeira, elipses: a lógica truncada dos anos de arbítrio reaparece ali, intacta.
Na peça, porém, o que não é ficção vem à luz sem nenhum disfarce. Mércia, a principal defensora de presos políticos no Nordeste – uma mulher cuja coragem beirava a temeridade e cuja bravura moral a tornou farol em tempos de treva – registrou o cotidiano de torturas, desaparecimentos e mortes com uma determinação que poucos teriam sustentado. Entre os que ela defendeu estava meu irmão Cândido, líder estudantil, perseguido pelas forças da repressão e que sobreviveu a um atentado que o deixou paraplégico aos 22 anos.
Os diários de Mércia, escritos em pleno Recife dos porões, descrevem desaparecimentos, torturas e corpos destroçados. Em cada anotação, há o cheiro de medo, a frieza do necrotério, a coragem solitária de quem ousou ver – e registrar – o que tantos preferiram não enxergar. Esses dois mundos – o real e o ficcional – se reencontram em pleno palco da memória brasileira. O que o filme imagina, a peça confirma; o que a peça revela, o filme traduz em imagem que não se apaga.
Há algo nesses dois trabalhos que vai além do conteúdo narrativo: eles falam do Brasil de hoje, um país que ainda evita olhar para trás. A frase de Kleber Mendonça – “o Brasil tem um trauma da memória” – ecoa em cada cena, em cada depoimento relembrado na peça, em cada ponte que o filme erige entre passado e presente.
Tudo isso lateja num país onde nenhum dos responsáveis pelos “gafanhotos” da ditadura foi condenado após a redemocratização; onde a palavra “anistia” virou, tantas vezes, desculpa para virar a página sem lê-la; onde os fantasmas seguem sentados à mesa mesmo quando fingimos não os enxergar.
O filme mostra a engrenagem da violência em rotação contínua; a peça expõe os nomes, os corpos e as datas. Mas o que une as duas obras é justamente a pergunta que ainda não sabemos responder: Como seguir adiante sem lembrar?
O Recife que aparece no filme e na peça, com seus bairros, seus becos e o Carnaval que irrompe na trilha sonora – “Madeiras do Rosarinho” como lamento e celebração – é mais do que cenário: é testemunha.
Nos anos 1970, bastava uma esquina para separar o sonho armorial, tecido por artistas que buscavam a alma brasileira, do terror institucional; uma rua movimentada para esconder o camburão sem placas; uma praça para ver passar, disfarçados de normalidade, os homens que decidiam quem vivia e quem morria.
O público do cinema e a plateia do Santa Isabel sabem – porque sentem no corpo – que aquela não é uma história distante. Aquilo aconteceu aqui.
É preciso dizer: tanto o filme quanto a peça exibem uma qualidade artística rara – e essa qualidade, longe de amenizar a dor do tema, a faz reluzir com dignidade.
A direção de Kleber Mendonça Filho é precisa como uma cicatriz: irregular, inesperada, sem as amarras do cinema comercial, mas soldada com artesania firme. O elenco inteiro, formado em grande parte por atores nordestinos, sustenta essa precisão com um equilíbrio raro – cada nterpretação encaixa no conjunto como peça essencial de um organismo vivo. Carlos Francisco, no papel de “Seu Alexandre”, oferece uma performance de sobriedade impressionante, quefunciona como eixo emocional em meio à vertigem da narrativa.
O roteiro da peça – escrita por Silvia Gomez – sabe esconder para revelar, cortar para aprofundar, desviar para enfim atingir o coração. No palco, a diretora Yara de Novaes conduz Andrea Beltrão por uma travessia que é, ao mesmo tempo, intelectual e visceral. A atriz, numa entrega que parece ultrapassar o corpo, transforma o diário de Mércia em presença viva. Seu gesto, sua voz, seu tremor calculado tocam algo que há muito se tenta esconder: que por trás de cada ficha, cada laudo, cada sigla, havia uma pessoa real – e alguém por quem Mércia lutou.
Ambas as obras nos devolvem a dignidade da memória. Não glorificam o horror; não exploram a dor alheia. Fazem o contrário: devolvem humanidade ao que tentaram desumanizar.
Ao final do filme, a plateia demora a levantar. Na peça, ninguém aplaude imediatamente. Há, antes, um instante de respiração suspensa, quase um luto dividido por desconhecidos.
É ali, nesse intervalo entre a ficção e a vida, que a arte brasileira cumpre seu papel mais profundo: O de abrir brechas de consciência, mesmo quando o país insiste em fechá-las.
A plateia sai transformada desses dois encontros. Não por acreditar que a arte possa sozinha corrigir o passado, mas porque ela nos obriga a admitir que um país sem memória seria como Marcelo, no filme: correndo sem que se saiba de onde veio, perseguido por violências que não entende, tentando resgatar seu filho e sobreviver sem ter para onde ir.
Há, sim, uma mensagem de esperança – embora amarga, quase envergonhada, como quem sabe que esperar demais seria tolice, mas desistir seria covardia. E essa esperança, pela primeira vez em nossa história, começa a se materializar ao vermos golpistas – os conspiradores de 2022 e 2023 – enfim responsabilizados e condenados a longas penas. Não se trata de vingança, mas de justiça histórica: um país que sempre absolveu seus algozes ensaia, timidamente, o gesto inédito de afirmar que a democracia não é negociável.
O fato de assistirmos a essas obras em 2025, no Recife, numa cidade que também tenta lembrar e se reconciliar consigo mesma, é uma prova de que o Brasil ainda não se entregou inteiramente ao esquecimento. A arte insiste, teima, reaparece. E nós, espectadores, ainda somos capazes de ouvir.
Talvez seja isso o máximo de otimismo que podemos permitir: continuar olhando para o passado mesmo quando o país tenta apagá-lo; continuar nos emocionando com histórias que nos transcendem, mas que nos constituem.
Porque, sem memória, o Brasil seguirá repetindo o mesmo pesadelo – e porque, com memória, talvez consigamos transformar parte dele em aprendizagem.