Fiocruz vai produzir canetas emagrecedoras: acesso público ao Ozempic?

Medicamento símbolo da desigualdade no tratamento da obesidade no brasil, Ozempic inspira produção nacional após acordo da Fiocruz com farmacêutica

Ana Luiza Melo

por Ana Luiza Melo

Publicado em 07/08/2025, às 11h10 - Atualizado às 11h28

Fiocruz vai produzir canetas emagrecedoras após acordo com a EMS Farmacêutica - Foto: Reprodução da Internet
Fiocruz vai produzir canetas emagrecedoras após acordo com a EMS Farmacêutica - Foto: Reprodução da Internet

O Brasil é um país em que o peso do corpo, muitas vezes, define o peso da desigualdade.

E poucas coisas ilustram isso tão bem quanto a "febre do Ozempic", um medicamento à base de semaglutida que virou símbolo da nova era dos “emagrecedores de luxo”.

Um tratamento eficaz, caro, escasso e, até agora, praticamente inacessível à população pobre. Isso pode começar a mudar com o anúncio de que a Fiocruz vai produzir, em parceria com a EMS, as famosas canetas injetáveis com essa substância.

Nesta quinta-feira (07), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), por meio do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), anunciou um acordo com a farmacêutica EMS para a fabricação de versões próprias da liraglutida, princípio ativo do Saxenda, e da semaglutida, ingrediente do Ozempic e do Wegovy.

Os fármacos, indicados para tratar diabetes tipo 2 e obesidade, foram desenvolvidos pelo laboratório dinamarquês Novo Nordisk.

No entanto, a patente da liraglutida já chegou ao fim, e a da semaglutida termina no ano que vem. O anúncio ocorreu em evento do setor nesta semana e contou com a presença do Ministro da Saúde, Alexandre Padilha.

Assim como em outras ocasiões, Padilha reforçou que, se comprovado um custo-benefício, as canetas emagrecedoras, como ficaram conhecidos os medicamentos, poderão ser incorporadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).

A primeira promessa é voltada ao tratamento do diabetes tipo 2, que foi a aplicação original do medicamento. Mas ninguém mais finge que a disputa em torno do Ozempic se limita a isso.

Ele se tornou um fenômeno global e, como tudo que viraliza na era do corpo digital, virou também um mercado milionário.

Celebridades, influencers e clínicas de estética fizeram do remédio um passaporte para o corpo magro em tempo recorde. O problema é que o acesso a esse passaporte custa mais de R$$ 1.000 por mês e exige prescrição — o que empurrou muita gente para a automedicação e o mercado paralelo.

Enquanto isso, o Brasil vê crescer o número de pessoas com obesidade, principalmente entre os mais pobres. De acordo com dados do Ministério da Saúde, atualmente, 56% dos brasileiros tem sobrepeso ou obesidade, sendo 34% com obesidade e e 22% com sobrepeso.

Um estudo da Fiocruz estima que se as projeções continuarem assim, até 2044 48% da população brasileira estará obesa e 27% terão sobrepeso. Problema de saúde afetará 3/4 dos brasileiros. 

A doença crônica, multifatorial, tratada muitas vezes com preconceito, piada ou moralismo, hoje é questão de saúde pública urgente. Mas o tratamento ainda é desigual.

O SUS oferece acompanhamento multidisciplinar e, nos casos mais graves, cirurgia bariátrica. Mas os medicamentos mais modernos, como os análogos de GLP-1, que incluem o Ozempic e seu primo ainda mais potente, o Wegovy continuam fora da realidade da imensa maioria da população. Mounjaro nem se fala. 

O que muda com o anúncio da Fiocruz não é apenas a produção nacional de um medicamento.

É a chance de iniciar um debate sério sobre a incorporação desse tipo de tratamento no SUS, com critérios técnicos, análise de impacto orçamentário e, principalmente, com foco no combate à desigualdade.

Afinal, que tipo de país permite que apenas uma elite tenha acesso ao tratamento medicamentoso da obesidade, enquanto a maioria lida sozinha com as consequências físicas, emocionais e sociais da doença?

Não se trata de glamourizar um remédio. Muito menos de estimular o uso estético sem indicação médica — algo que precisa, sim, de regulação e responsabilidade. Trata-se de entender que, para milhões de brasileiros, obesidade não é uma questão de vaidade, mas de sobrevivência.

E que é dever do Estado garantir que o tratamento dessa doença não seja um privilégio de quem pode pagar por ele no cartão de crédito.

A produção local é só o começo. O caminho até a democratização do acesso é longo, passa por avaliações da Conitec, pela revisão de protocolos clínicos e, inevitavelmente, por escolhas políticas.

Que o debate esteja, enfim, lançado — e que ele não seja capturado pelos interesses de mercado ou pelo moralismo com que se costuma tratar os corpos fora do padrão.

A caneta está na mesa. Resta saber quem vai poder usá-la.