O dilema americano que já contaminou o Brasil: polarização, armas e ódio político

Áureo Cisneiros | Publicado em 15/09/2025, às 07h50 - Atualizado às 08h04

Aureo Cisneiros, presidente do Sinpol, diz que, com disputas que ultrapassam o debate e invadem as redes sociais, instituições frágeis e o envolvimento de milícias, o país enfrenta um cenário perigoso de polarização extrema - Divulgação
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Por Áureo Cisneiros, em artigo enviado ao site Jamildo.com

Polarização política crescente, facilidade de acesso a armas e retórica inflamável nas redes sociais: essa combinação explosiva não é mais apenas um dilema americano. O Brasil já está contaminado por essa lógica. A violência política deixou de ser ameaça distante e se tornou realidade em nosso país — com mortes, atentados e um clima de intolerância que corrói o tecido democrático.

Quando a política vira guerra de torcidas

Nos Estados Unidos, o cidadão comum já não vê o adversário como alguém que pensa diferente, mas como inimigo a ser eliminado. Esse clima de hostilidade saiu dos debates e entrou nas casas, separando famílias, vizinhos e colegas de trabalho. No Brasil, também sentimos isso: basta olhar as redes sociais para ver ofensas substituindo argumentos e o ódio ocupando o lugar do diálogo.

O risco das armas e a escalada da violência

A política do ódio nos Estados Unidos já produziu uma sequência de tragédias: a congressista Gabby Giffords, baleada em 2011; a marcha de Charlottesville em 2017, que terminou em morte e dezenas de feridos; a invasão do Capitólio em 2021, símbolo do ataque direto à democracia; o atentado contra Paul Pelosi, marido da então presidente da Câmara, em 2022; a tentativa de assassinato de Donald Trump, em 2024; e, mais recentemente, o assassinato do ativista conservador Charlie Kirk, em 2025, em plena universidade.

No Brasil, já temos nossa própria lista de episódios de ódio político

2018: o então candidato Jair Bolsonaro foi esfaqueado em Juiz de Fora.

2022: o guarda municipal Marcelo Arruda, do PT, foi assassinado em sua festa de aniversário em Foz do Iguaçu, diante da família, por motivação política.

2022: o líder petista Benedito Cardoso dos Santos foi morto na Bahia após uma discussão política.

2022: a deputada federal Carla Zambelli sacou uma arma e perseguiu um militante de esquerda em São Paulo, em plena rua, na véspera do segundo turno das eleições.

2022: um comitê do PT em Fortaleza foi alvo de incêndio criminoso, deixando feridos.

2023–2024: professores, jornalistas e militantes foram ameaçados ou agredidos em eventos políticos em vários estados.

Esses episódios mostram que a violência política não é mais uma exceção no Brasil: virou prática recorrente, sinal de que o país já está contaminado pela mesma lógica mortal que destrói os Estados Unidos.

Redes sociais: a fábrica da raiva

As plataformas digitais aumentam o alcance de quem fala alto, polariza e acusa. O que gera mais raiva vende melhor e engaja mais. Essa lógica favorece narrativas extremas, teorias conspiratórias e a glorificação da violência, atingindo especialmente os jovens, que formam sua visão de mundo a partir de vídeos curtos e simplistas que estimulam intolerância.

Instituições frágeis, crime organizado e milícias

O risco se agrava quando instituições estatais são lentas, desconectadas da população ou falham em responder à violência. No Brasil, a situação é ainda mais grave: milícias e facções criminosas já controlam territórios, interferem em eleições e intimidam cidadãos. Assim, a radicalização política encontra um cenário de poder armado paralelo, tornando o risco brasileiro ainda maior do que o americano.

O púlpito que virou palanque do ódio

Outro agravante é o papel de *parte*(sem generalizar, pois sabemos que tem líderes religiosos responsáveis e respeitáveis) dos líderes religiosos. Ao invés de pacificadores, muitos têm usado seus púlpitos para incitar a polarização. Pregam a lógica do inimigo a ser vencido, estimulando intolerância, quando deveriam pregar o amor e a reconciliação. O exemplo mais gritante disso é o pastor Silas Malafaia, que constantemente transforma a fé em palanque político, disseminando ataques e divisionismo, em contradição direta com o evangelho que diz representar.

A normalização do ódio

A violência não começa com tiros. Começa com palavras que desumanizam, com mentiras que viram rotina, com agressões verbais vistas como normais. Quando a sociedade se acostuma a esse ambiente, a violência física se torna apenas o próximo passo. O Brasil já atravessa essa linha perigosa: políticos atacados, jornalistas perseguidos, cidadãos mortos em festas ou bares por causa de preferências partidárias.

A banalização da democracia

Mais grave do que os atos em si é quando a sociedade passa a aceitá-los como normais. Quando um assassinato político é explicado como “efeito da polarização”, quando agressões a jornalistas são relativizadas, quando ameaças deixam de chocar, o que está em curso é a banalização da democracia. Uma democracia morre não apenas pela força das armas, mas também pela indiferença do povo.

Educação, imprensa livre e esperança como antídotos

Para frear essa escalada, precisamos de mais do que protestos: é urgente fortalecer a educação crítica, a imprensa livre e o debate público qualificado. Sem isso, estaremos entregando a democracia nas mãos do ódio e da mentira organizada.

O alerta ao Brasil

O exemplo americano de extremismo não é distante: é modelo que já influencia discursos, leis e práticas pelo mundo. A série de ataques políticos nos EUA mostra que a violência se normalizou. E, no Brasil, já começamos a seguir essa mesma trilha sangrenta.

E há um fator ainda mais preocupante: o Brasil é historicamente muito influenciado pela sociedade americana. O exemplo da liberação de armas de fogo, copiado quase como modelo, mostra como importamos práticas sem considerar nossas próprias fragilidades. O mesmo ocorre com a polarização: importamos não só o discurso, mas também os métodos de radicalização, que aqui encontram um terreno fértil marcado pela desigualdade, pelo crime organizado e pelas instituições frágeis.

A democracia ainda é jovem

É preciso lembrar que a democracia brasileira tem pouco mais de três décadas de estabilidade após a ditadura militar. Ainda estamos consolidando instituições, aprendendo a conviver com as diferenças e a fortalecer uma cultura política plural. Justamente por isso, não podemos permitir que a violência, o radicalismo e a intolerância coloquem em risco conquistas tão recentes e tão duramente alcançadas.

Não basta esperar, é hora de agir

A democracia não se sustenta sozinha. Ela depende de cada cidadão que escolhe não propagar ódio, que se recusa a compartilhar mentiras, que cobra de suas lideranças responsabilidade e que defende o direito de todos, inclusive de quem pensa diferente. O futuro do Brasil não será decidido apenas em Brasília ou nos tribunais, mas também nas nossas conversas de família, nos púlpitos, nas escolas e nas redes sociais. Se cada um fizer sua parte, ainda há tempo de virar essa página de intolerância e construir um país que valorize a vida, a paz e a justiça.

Áureo Cisneiros é presidente do SINPOL-PE e apresenta-se como defensor da segurança pública como direito fundamental

redes sociais Polarização ódio

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