Luiz Mário Guerra * | Publicado em 29/01/2025, às 13h37 - Atualizado às 14h21
* Luiz Mário Guerra é Procurador do Estado de Pernambuco, Advogado Criminalista, Mestre em Direito Penal e Sócio do Urbano Vitalino Advogados.
Há uns dias estive na Universidade de Salamanca para um evento. Aproveitei e dei um pulo em Madrid para “turistar”. Entre o clássico, o gótico e o barroco do centro da cidade, surpreendi-me em uma das praças com um grupo de pessoas atentas a uma jovem moça que ganha a vida contando histórias de crimes. O formato é bem simples: uma narrativa oral de delitos de grande repercussão, com ares teatrais e toques de suspense e mistério, no meio da rua: um traço de morbidez no caráter humano.
Não deveria, mas entretém. As execuções públicas, Jack, o estripador, Bonnie & Clyde, o bandido da luz vermelha, o maníaco do parque, são mazelas sociais que, romantizadas, beiram contos. Essas tragédias urbanas, exploradas à exaustão, quando estão perto do esquecimento, são quase sempre requentadas por alguma "releitura", "adaptação" ou, atualmente, por uma série da Netflix. É um deleite para muita gente.
Shakespeare, Victor Hugo, Dostoiévski e tantos outros gênios da literatura escreveram romances com histórias complexas de crimes bárbaros, idealizadas sobretudo para aplacar o tédio da normalidade cotidiana.
Atualmente, no Brasil, os programas policiais matutinos dominam a audiência. Uma exibição diária de presos, vítimas, acusados e investigados, apresentados em formato circense, jocoso, recreativo e, paradoxalmente, humilhante aos atores nos seus mais diversos papéis.
Vejam: alguém já parou para pensar por que o Ministério Público é o titular da ação penal? É que a vida em sociedade pressupõe um pacto: nós, voluntariamente, decidimos ceder parte da nossa liberdade para gozar de uma liberdade maior. Se não podemos ceifar a vida de ninguém, tampouco podem atentar contra a nossa. Se eu não posso subtrair patrimônio alheio, todos têm o igual dever de respeitar as minhas posses. Essas condutas são sistematizadas sob o selo do direito penal e recebem correlatas penas. E assim a vida em sociedade se faz possível.
Daí haver lógica em dizer que o crime é, acima de tudo, um fato que se opõe ao contrato social e, logicamente, havendo um órgão responsável pela defesa do interesse público, atribuiu-se-lhe a acusação penal.
Por isso, eu, advogado criminalista de meia idade e meio ranzinza, vejo esses espetáculos medievais com repulsa e estupefação. Não há graça em nada disso.
Diariamente, vidas jovens são perdidas para o tráfico, idosos são assaltados à luz do dia, mulheres são reificadas e mortas. Numa sociedade, não há nada mais destrutivo do que o crime. Para piorar, não há esperança no sistema prisional. Não tem conserto.
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Mas o homem é feito de idiossincrasias e dado a regozijar-se mesmo com as mazelas humanas hábeis a bater-lhes à porta. Qualquer brecha é suficiente para desnudar a languidez do seu caráter, revelando suas deformidades morais.
Enfim, não acho que esse pequeno discurso, idealizado no meio da rua, mudará coisa alguma, mas me serve de desabafo e registro de uma opinião que, acima de tudo, é falível, porquanto pessoal. Mas, vá lá! No dizer de Erasmo de Rotterdam, “tudo na vida é tão obscuro, tão diverso, tão oposto, que não podemos certificar-nos de nenhuma verdade”.
Sob os meus auspícios, só me resta esperar a chegada da lucidez conforme por mim denominada. E que eu seja não um Schopenhauer para quem “o inferno é a Terra”, mas, como Suassuna, um “realista esperançoso”.
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