Ricardo Leitão: a Bolívia expele gases tóxicos

General que tentou golpe na Bolívia foi preso pela polícia, junto com outros 17 militares participantes da tentativa de levante

Jamildo Melo

por Jamildo Melo

Publicado em 30/06/2024, às 23h13

Militar tentou golpe na Bolívia, sem sucesso - EBC
Militar tentou golpe na Bolívia, sem sucesso - EBC

Por Ricardo Leitão, em artigo especial para o Blog de Jamildo

Em 199 anos de independência, a Bolívia sofreu 194 golpes ou tentativas de golpes de Estado, um recorde mundial. Alguns cruentos, com dezenas de mortos; outros, meras quarteladas. A tentativa golpista do dia 26 de junho talvez tenha sido a mais patética, inusitada e tosca de todas.

Sem apoio popular nem de setores políticos, o general Juan José Zúñiga, destituído do comando do Exército no dia anterior, invadiu o palácio presidencial, no centro de La Paz, capital da Bolívia, para prender o presidente Luis Arce. O presidente o encarou e ordenou que se retirasse com seus quatro tanques e um punhado de soldados. Horas depois, o general foi preso pela polícia, junto com outros 17 militares participantes da tentativa de golpe.

A situação, no entanto, é imprevisível. O presidente Arce é candidato à reeleição em 2025, quando será enfrentado por Evo Morales, eleito presidente em 2005, 2009 e 2014. A possibilidade de um quarto mandato de Morales seria o motivo da intentona de Zúñiga.

Até o momento, não se sabe se o general agiu só ou se representa um segmento das Forças Armadas, de acordo com os modelos golpistas que proliferaram nas Américas do Sul e Central nas décadas de 1960 e 1970. Quarteladas mais recentes seguiram outros modelos e foram lideradas por civis que cooptaram militares, como se deu no Peru, com Alberto Fujimore na Venezuela, com Nicolás Maduro.

No Brasil, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, encabeçada por bolsonaristas de extrema direita e com a retaguarda de militares também bolsonaristas, tinha o potencial de deflagrar uma guerra civil, não fosse a ação imediata e integrada do Estado Maior das Forças Armadas, da Presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.

Porém Jair Bolsonaro, mesmo fora da campanha de 2024 e 2026 por punição do Tribunal Superior Eleitoral, ainda tem força para liderar a extrema direita, a direita e os conservadores nas eleições deste ano e na disputa presidencial.

Sobre o Brasil ainda pesam a inflação domada, mas não vencida; a redução dos investimentos públicos, principalmente em programas sociais; a divisão interna do governo, entre fiscalistas e desenvolvimentistas, e a reação do Congresso, majoritariamente conservador, na aprovação de projetos estruturadores.

Na Argentina, a situação é similar. O presidente Javier Milei – que se denomina líder da direita no continente – foi o único a não se solidarizar, pessoalmente, com o presidente boliviano Luis Arce. Os argentinos enfrentam desemprego e fome; o produto interno bruto desabou 5,1%, no primeiro trimestre deste ano, e a inflação anualizada já alcança 200%. O risco de uma convulsão social é permanente, liderada pela forte oposição peronista.

Ao contrário da Bolívia, no Brasil e na Argentina as Forças Armadas mantêm um obsequioso silêncio, apenas quebrado por notas oficiais nas quais é reiterada a defesa dos princípios democráticos e constitucionais.

Não há por que duvidar, embora haja pela frente um oceano encapelado para se cruzar, sombreado pelas nuvens do gás tóxico boliviano. Mesmo afastando-se riscos de naufrágios no Brasil, por aqui existe a ameaça da direita de tentar virar o barco, como ocorreu depois de derrotada, em 8 de janeiro de 2023.

Apesar de inelegível, Bolsonaro é uma liderança incontestável. Desde abril visita os estados, articulando candidaturas nas principais cidades e nas capitais. A meta é eleger 1.500 prefeitos em outubro e, em 2026, conquistar a maioria no Senado e uma grande bancada na Câmara dos Deputados.

Empenha-se para colocar o seu candidato no segundo turno da eleição presidencial, no mínimo. Por enquanto o nome é o do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Não é pouco para uma aliança que corrói a democracia, sempre defendeu a ditadura militar e que tem como líder um ex-presidente investigado, por crimes diversos, pela Polícia Federal.

Na Argentina, Javier Milei não enfrenta um desafio desse porte, que no Brasil será ainda maior se Donald Trump – aliado de Bolsonaro – vencer as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em novembro próximo.

Os assessores e apoiadores de Lula sabem disso. E sabem mais: é grave, até para as relações internacionais, se as duas maiores economias da América do Sul – Brasil e Argentina – passarem a ser comandadas por presidentes de uma direita nos padrões de Milei e Bolsonaro.

Lula e a aliança de centro-esquerda que lhe dá sustentação política e eleitoral têm plena consciência do risco. É preciso reagir logo, retomando a maioria no Congresso; aumentando o investimento público; ampliando os programas de apoio aos mais pobres; combatendo a inflação, o desemprego e a fome. Um enfrentamento difícil, que mais difícil se torna quando encarado por um governo trincado pela crise autofágica, desencadeada pela disputa sucessória precoce.

Entre o boliviano Arce, o argentino Milei e Lula, o tempo político do presidente brasileiro é o mais curto – a três meses das eleições municipais de outubro. A determinação de Lula em reunificar seu ministério, buscar mais eficiência da administração e recompor a base aliada é cada vez mais evidente.

Sabemos o que historicamente representará, para os brasileiros, a volta do bolsonarismo ao poder. Lula precisa ser ampla e firmemente apoiado. A derrota da centro-esquerda, neste ano e em 2026, significará um retrocesso sem antecedentes na luta pela soberania nacional, pelo desenvolvimento social e pelos direitos humanos.